Morreu Celeste Rodrigues, a fadista que foi muito mais do
que a irmã de Amália
Irmã mais nova de Amália Rodrigues, iniciou a sua
carreira, sempre autónoma, há 73 anos. Tinha 95 anos e nos últimos tempos
tornara-se uma das preferências de Madonna. O velório é esta quinta-feira no
Pátio da Galé, a partir das 19h, seguindo o funeral sexta-feira, às 14h30, para
o Cemitério dos Prazeres.
Nuno Pacheco e
Lucinda Canelas, 1 de Agosto de 2018
Foi o neto, Diogo
Varela Silva, quem primeiro anunciou a morte da fadista Celeste Rodrigues, esta
quarta-feira, aos 95 anos, confirmando depois a notícia à agência Lusa: “É com
um enorme peso no coração que vos dou a notícia da partida da minha Celestinha,
da nossa Celeste. Hoje deixou uma vida plena do que quis e sonhou. Amou muito e
foi amada, mas, acima de tudo, foi a pedra basilar da nossa família, da minha
mãe, da minha tia, dos meus irmãos, sobrinhos e filhos, somos todos
orgulhosamente fruto do ser humano extraordinário que ela foi”, escreveu na
rede social Facebook. O corpo da fadista será velado esta quinta-feira, a
partir das 19h, no Pátio da Galé, em Lisboa (entrada pela Praça do Comércio), e
o funeral sairá na sexta-feira, às 14h30, para o Cemitério dos Prazeres.
Nascida no Fundão,
em 14 de Março de 1923, de onde saiu para Lisboa com apenas cinco anos, a irmã
de Amália Rodrigues iniciou a carreira há 73 anos, ao aceitar o convite feito
pelo empresário José Miguel (1908-1972), detentor de vários teatros e casas de
fado, entre os quais o Café Casablanca. Mas foi a cantar canções tradicionais
da Beira, ensinadas pela mãe, e os fados ouvidos na rua “aos ceguinhos”, como
contava em 2014 numa entrevista ao PÚBLICO, que começou por ganhar uma voz que
ficaria para sempre associada à linhagem do fado castiço. Da infância pobre que
viveu na Beira Baixa retinha sobretudo a força da mãe e a presença musical do
pai, “que tocava muito bem”, lembrava na mesma entrevista: “A pobreza: nem
dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma
refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos
não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam também. Mas não
dávamos por essa necessidade.”
A voz da mãe – e
não a da irmã, Amália, três anos mais velha, e também para Celeste referência
até hoje inultrapassável da canção de Lisboa – era, dizia, a mais bonita que
ouviu na vida. Mas foi obscurecida pela sombra da irmã que se fez fadista, sem
ressentimento algum: “Nunca se meteu na minha carreira artística, felizmente.
Se não, eu tinha desistido. Canto à minha maneira, canto as minhas
cantiguinhas. Como eu sinto. Nunca a imitei. Tentei fugir à maneira de ela
cantar (...). Há tantos alfaiates. Eu não tinha de ser como ela.”
Casada, aos 30
anos, com o actor Varela Silva, abriu com ele uma casa de fados, A Viela, que
viria a fechar ao fim de quatro anos, ingressando então Celeste Rodrigues no
elenco da casa de fados de Argentina Santos, A Parreirinha de Alfama. Nos anos
1950, e já conhecida a nível internacional, actuou em diversos países: Espanha,
Brasil, Estados Unidos e no continente africano. Gravou, ao longo da sua
carreira, cerca de 60 discos, o mais recente dos quais Fado Celeste, em 2007.
Colaborou, com entusiasmo, em vários projectos musicais, do fado à pop.
Do seu repertório
constam, entre outros temas, A lenda das algas e o Fado das queixas. Apesar da
longa carreira, nunca deixou de se sentir tímida em cima do palco (“Fecho os
olhos e pronto. Não quero luz na cara”). E nem a confessa admiração de Madonna
na sua nova fase lisboeta (a cantora norte-americana fez questão de tê-la
consigo em Nova Iorque na passagem de ano) lhe tirava os pés do chão: “Parece
que estou a fazer propaganda de mim própria e eu não gosto disso, nunca
precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que
quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e é só isso”, respondia
em Maio ao Diário de Notícias, nas vésperas de um dos seus últimos concertos,
no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa.
Lucidez e vontade de viver
No concerto do
Tivoli, na noite de 11 de Maio deste ano, Celeste Rodrigues celebrou 73 anos de
carreira e 95 de vida, como já antes celebrara no São Luiz, em 21 de Dezembro
de 2010, os seus já então respeitáveis 65 anos de carreira, numa demonstração
de ímpar longevidade entre as vozes do fado. No Tivoli estiveram com ela os
músicos Pedro de Castro, André Ramos, Francisco Gaspar e o seu bisneto Gaspar
Varela, um jovem guitarrista, bem como vários fadistas (Teresinha Landeiro,
Duarte, Hélder Moutinho, Fábia Rebordão, Jorge Fernando e Kátia Guerreiro). Um
deles, Jorge Fernando, recorda-a agora deste modo: “Eu era muito chegado à
Celeste, por via da Fábia [Rebordão, também fadista], estávamos durante a
semana vários dias juntos. E sempre me fascinou nela a inteligência, a verdade,
a lucidez, o canto, a vontade de viver. Ela, com 95 anos, tinha uma agenda de
concertos e já queria repetir para o ano o concerto que deu no Tivoli em Maio.
Foi convidada e íamos repeti-lo em Paris.”
Essa actividade,
diz Jorge Fernando, é uma grande lição: “Para mim e para todas as gerações.
Este é um momento muito triste para todos nós, porque sempre foi uma senhora
pautada pelo rigor, pelo respeito, pela tolerância. Resta realçar que ela teve
a vida que quis, foi feliz como quis, não teve grandes males a assolarem-lhe a
porta. Deixa-nos saudades a todos.” Quanto ao lugar de Celeste Rodrigues no
fado, Jorge tem esta opinião: “Sempre achei que ela esteve entre as melhores. A
Madonna apaixonou-se por ela, o Egberto Gismonti, um dia quando estávamos a
ouvir música no meu carro, perguntou-me ao ouvi-la: ‘Quem é? Que bem canta!’
Mas talvez parecesse pouco para o talento que ela tem.”
Hélder Moutinho,
outro dos fadistas que estiveram no Tivoli naquela noite, tem de Celeste as
melhores memórias: “No início da minha carreira, eu quis deixar de cantar.
Trabalhava com ela na Taverna do Embuçado e despedi-me, desmotivado e zangado
com os fados. E a Celeste, durante um mês, insistiu comigo que eu não podia
deixar de cantar. Disse-me que eu não podia deixar o fado, porque o fado
precisava de mim.”
Esta atitude para
com os fadistas mais novos era uma constante na sua vida, diz Hélder: “A
Celeste é provavelmente a pessoa da geração mais antiga que mais apoiou e
incentivou a nova geração em relação ao fado. Não havia ninguém da nova geração
que não a tratasse por avó e a acarinhasse. Era a pessoa mais querida da velha
geração, ela e o Joel Pina [histórico viola de fado e professor, com 98 anos,
no activo], que ainda está cá connosco. Vai-nos fazer muita falta.”
Um reconhecimento que tardava
Rui Vieira Nery,
musicólogo e estudioso do fado, corrobora esta opinião: “Muitos fadistas mais
jovens pediam-lhe conselho e confiavam nos conselhos dela. Ela funcionava um
bocadinho como uma matriarca respeitada pela tribo do fado, porque era uma
pessoa carinhosa e sábia. Era uma voz que os jovens fadistas ouviam com
respeito.” Já em relação ao seu papel no fado, diz que o facto de ser irmã de
Amália a prejudicou. “Se fosse uma fadista completamente independente, sem
ligações familiares a um grande nome, acho que teria tido oportunidades que não
teve, porque as pessoas automaticamente a arrumavam na prateleira de irmã da
Amália.”
Mas o mérito de
Celeste Rodrigues acabou por ser reconhecido nos últimos anos, diz Rui Vieira
Nery. “Ela era uma mulher com uma personalidade artística muito forte, uma
capacidade dramática muito intensa, que teve a ‘infelicidade’ de ser irmã da
Amália e de isso ter desviado a atenção do público, durante muitos anos, do
talento especial e próprio que ela tinha. No fundo, foi já nos últimos 20 anos,
depois da morte da Amália, que as pessoas de repente olharam para a Celeste
como uma personalidade autónoma, sem a sombra do nome e da fama da irmã. E
ganhou, no fim da vida, um reconhecimento que tardava.”
Um comeback no palco do São João
O encenador Ricardo
Pais, que se lembra bem de ouvir Celeste Rodrigues ao vivo na década de 60 na
Parreirinha de Alfama, de Argentina Santos, dirigiu-a já nesses últimos 20 anos
de vida em Cabelo Branco É Saudade, espectáculo que se estreou no Teatro
Nacional de São João, no Porto, em 2005.
Na altura com 82
anos, era a mais velha de um elenco de quatro cantores (com Argentina, Alcindo
de Carvalho e Ricardo Ribeiro) dessa produção que pretendia colocar sob os
holofotes o universo singular das velhas casas de fado e os intérpretes de
excepção que nelas se podem encontrar, tantas vezes tão injustamente esquecidos
ou relegados para um plano secundário.
“Ouvi-a nos anos 60
e o seu timbre era completamente diferente, claro, mas uma coisa mantinha-se
até hoje – uma espantosa técnica no uso da voz”, garante o encenador. Uma
técnica a que recorreu ao longo da vida para ir ultrapassando as fragilidades
que a idade lhe impunha.
“O Cabelo Branco É
Saudade foi o seu comeback e, para parte do público, a parte mais jovem, foi
até uma revelação”, acrescenta, recordando a recepção especialmente carinhosa
que a fadista teve nalguns palcos da digressão internacional do espectáculo, em
cidades como Paris, Nápoles ou Frankfurt.
“Era uma pessoa
extraordinária, culta, que pintava e tinha uma grande facilidade com as
línguas. Era óptimo trabalhar com ela, um prazer.” Durante a preparação de
Cabelo Branco É Saudade, que teve direcção musical de Diogo Clemente, a única
coisa a que Celeste Rodrigues resistiu foi a cantar Meu corpo, um tema com
letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Fernando Tordo, composto para
Beatriz da Conceição. “Dizia que era demasiado erótico para alguém com a idade
dela, mas acabou por cantar. Convenci-a num elevador, mas para isso até tive de
cantar uma parte do fado”, conta.
Para o encenador,
Celeste Rodrigues sempre soube lidar com o facto de ser irmã de Amália
Rodrigues e acabou por construir “uma carreira fantástica” e singular,
original. “Era, definitivamente, pelo menos tão única como ela [Amália].”
Com um “reportório
irrepreensível”, de “imenso bom gosto”, Celeste Rodrigues tinha outra
particularidade que, segundo Pais, era evidente – “uma crença espantosa,
profunda, no fado como género e como forma de vida”.
Ninguém como ela
Também o cineasta
Bruno de Almeida, que nos 90 anos da fadista lhe fez uma homenagem em vídeo em
que ela aparece a cantar, como não podia deixar de ser, rodeada de talentos do
fado que a têm como referência – uns consagrados mas muitos mais novos do que
ela, outros ainda jovens promessas –, garante que não há ninguém comparável a
Celeste Rodrigues. A voz, a maneira como cantava (de cabeça para trás, muito
direita), o reportório que escolhia, mas sobretudo a sua personalidade, que a
levou a lidar de “forma muito inteligente” com o facto de ser irmã de Amália,
asseguraram-lhe uma “carreira muito própria, bonita”.
“A Celeste percebeu
desde muito cedo que a irmã era um génio, mas nem por isso deixou de fazer o
que ela mais queria – cantar”, diz o realizador, que conheceu as duas quando
era ainda criança e que desde aí e até à morte da fadista teve sempre uma
“relação muito especial” com Amália. “Conheci a Celeste ainda criança na casa
da irmã, porque eram muito chegadas, muito amigas, mas só me aproximei mais
dela depois de a Amália morrer”, continua.
Segundo Bruno de
Almeida, estas duas irmãs muito diferentes tinham em comum uma intuição e uma
inteligência fora do normal. “A interpretação da Celeste era mais contida,
talvez por causa da timidez. Ela foi sempre uma artista – uma pessoa – de
grande honestidade. Teve um percurso sólido, vertical, que foi feito à margem
da irmã, com as suas próprias escolhas e sem qualquer mágoa.”
Conta o realizador
que era impossível jantar com Celeste Rodrigues sem a ouvir cantar – “Começava
a bater na mesa, com aquela cadência das canções da Beira Baixa que ela gostava
de cantar” – e a contar histórias sobre as gentes do fado ou sobre como nos
anos 40 e 50 comprava poemas avulso aos autores que andavam pelos cafés do
Chiado para poder interpretar temas diferentes dos outros. “A Celeste era uma
bíblia do fado, que cantava de uma forma muito interior, muito dela.”
A fadista integrou
o elenco do seu último filme, Cabaret Maxime (já nos anos 90 entrara em Xavier,
de Manuel Mozos) e, sem esforço, diz o cineasta, fez com que todo o elenco se
apaixonasse por ela. “Uma noite com a Celeste era uma lição de vida. Durante a
rodagem chegámos a jantar às 5h da manhã, porque ela tinha a energia de uma
mulher com 20 anos. Era muito particular.” E, para ilustrar o que diz, pergunta
quem se não ela é que aos 90 anos deixa de fumar três maços por dia, porque
finalmente decidiu acatar os conselhos do médico. “Aos 94/95 a Celeste era
capaz de se meter sozinha num táxi de madrugada para ir cantar ao Luso, de onde
saía depois para acabar na Mesa de Frades. Que outra pessoa faz isto?”