Em baixo, o actor Toni Servillo lê excertos de Pessoa.
Fernando Pessoa não se pode traduzir.
Quem ousou dizê-lo, numa intervenção quase polémica e muito documentada, foi a Professora Giulia Lanciani, sábado passado, na “Giornata di studio per il Ventennale dell’Istituzione dei Premi Nazionali per la Traduzione”, patrocinada pelo Ministero per i Beni e le Attività Culturali e no âmbito da Semana da Cultura, que termina hoje, 31 de Março.
A apresentação de Giulia Lanciani, “Pessoa e i suoi traduttori italiani” seguiu-se às de Masolino D’Amico, Franco Buffoni e antecedeu a de Pietro Marchesani. Uma manhã de estudos importante, em que se debateram temas como o da tradução ser uma experiência existencial mais que um exercício formal (na linha de George Steiner), o de ser uma arte exacta e o de não existirem traduções definitivas dada a contínua evolução das línguas.
Um dos principais argumentos que sustentam a “intraduzibilidade” pessoana relaciona-se com um aspecto muito concreto: o da dificuldade de leitura dos manuscritos do Poeta português, constantemente alterados e, quase na sua totalidade, inéditos à data da sua morte – ou seja, incompletos, na óptica de Pessoa: textos que não estavam prontos a ser publicados ou mesmo que não deveriam ser publicados. A devassa do espólio contido na famosa “arca” por parte dos familiares e dos primeiros editores (Ática) comprometeu, além do mais, uma hipotética ordem que esses textos tivessem.
“L’idiosincrasia della sua poesia rifiuta un significato irreversibile”, acrescentou Giulia Lanciani. Porém, um significado – ou mais do que um – foi-lhe quase imediatamente dada, dentro de uma óptica e de uma escolha editorial; de facto, os inéditos começaram quase imediatamente a ser publicados, transmitindo a várias gerações um Pessoa que talvez não fosse o verdadeiro Pessoa.
A este propósito - nota deliciosa - o escritor e jornalista Augusto Abelaira declarara que, por melhores que fossem as sucessivas edições críticas do espólio pessoano, aquela que se fixara na sua memória de menino, mesmo com erros, era a única versão que lhe interessava: o falso era para ele o verdadeiro Fernando Pessoa.
Dois exemplos da volubilidade das edições de Pessoa, que inviabilizam necessariamente uma sua tradução tendente ao definitivo, são os do Livro do Desassossego e do Faust (de que o actor Toni Servillo leu um excerto, no fim da conferência).
O Livro do Desassossego mais não é que uma colecção de apontamentos; todavia alguns deles tinham já sido publicados em 1913 na revista A Águia, como pertencentes a um livro que só em 1982 viria a ser publicado. A obra do semi-heterónimo Bernardo Soares (a personalidade de Fernando Pessoa sem os seus raciocínio e afectividade), que se encontrava na arca em 5 envelopes, pertence hoje ao fundo da Biblioteca Nacional de Lisboa, e está dividido em 9. Com que critério e o que determinou esta nova divisão na verdadeira vontade do Poeta?
Faust foi pela primeira vez publicado em 1952 por Eduardo Freitas Costa. O que foram, nessa edição, 70 fragmentos inéditos de um drama, ou, mais propriamente, de uma “tragédia subjectiva”, transformaram-se, na edição de 1988, em 227 fragmentos.
Em ambos os casos bem se pode compreender que o texto que é dado ao tradutor não é nunca exactamente o texto pensado e escrito por Pessoa. No limite Pessoa não se traduz porque Pessoa não existe, é sempre uma construção dos seus editores.
Ao findar a sua intervenção, Lanciani recordou alguns dos maiores tradutores de Pessoa em Itália – Panaresi, Tavani e Tabucchi – e concluiu com os versos de Pessoa:
“Meu pensamento, dito, já não é
Meu pensamento.
(...)
Assim, quanto mais digo, mais me engano,
Mais faço eu
Um novo ser postiço, que engano
De ser o meu.”
O jogo continua. A heterogénea personalidade de Pessoa prossegue a sua viagem e os seus desdobramentos através das várias edições que da sua obra se continuam a fazer.
Giulia Lanciani faz actualmente parte da Comissione "Premi Nazionali per la Traduzione", tendo sido premiada na edição de 2003.
Gostei muito da "Giornata di Studio per il ventennale dell'istituzione dei premi nazionali per la traduzione".
RispondiEliminaA apresentaçao que a Professora Giulia Lanciani fez sobre Fernando Pessoa foi extremamente interessante.
Gostei também dos outros relatores e descobri o mundo da traduçao poética e a sua evoluçao através o tempo.