in memoriam di Maria Helena Portugal Barchiesi
(09.08.1923 - 21.08.2015)
A casa de Maria Helena
Portugal na colina de San Saba parece uma torre de um conto de fadas, no alto
desse Aventino verde e destacado da cidade, como que adormecido, como que
sonhando uma realidade diferente da realidade. Nessa torre quis Maria Helena
passar os últimos anos da sua vida, mantendo vivo o seu interesse pelo mundo
externo, mas apartada dele. Na minha ideia mistura-se essa imagem de fidalga
antiga, de torre, à de uma diva do cinema que não quis mostrar aos
seus admiradores a injúria que o tempo operou na sua beleza; é que, Maria
Helena era além de tudo mais uma belíssima senhora.
Paradoxalmente, é a ela –
auto-exilada na sua torre, humanidade que foi conquistando o mito ainda em vida
– a quem eu devo a melhor definição de liberdade, a quem mais limpidamente ouvi
o som dessa palavra. Nela, liberdade era mais que modernidade (e se bom exemplo
há, na sua geração, de mulher moderna e emancipada pela força da sua
personalidade e inteligência, é sem dúvida Maria Helena). Nela, a liberdade era
sabedoria adquirida nos anos, era terreno conquistado com esforço quotidiano,
tanto em gestos e atitudes de independência, quanto nos momentos em que as
circunstâncias a privaram dessa liberdade, “coisa” que me garantiu ser, de
todas, a mais preciosa.
Parece-me perfeita a
associação entre ela e este quadrissílabo de ascendência latina, acentuado naturalmente
na penúltima, como de regra – quase a revelar o verbo dar escondido em si, numa
terceira do singular do presente do indicativo: li.ber.da.de. Palavra
feminina, no italiano como no português, palavra à qual sem dúvida o seu amor
filológico pelas coisas deste mundo regressou muitas e muitas vezes.
Penso que se se pedisse a Maria
Helena Portugal para se identificar com um “livro da sua vida” – como naqueles ingénuos
jogos que se faziam à mesa, depois das refeições, no fim do século XIX – ela
não hesitaria um instante em dar resposta redonda: DICIONÁRIO. A tia Lena
coleccionava-os, manuseava-os, estudava-os, punha-os numa estante baixa que
tinha ao pé de si, na saleta em que recebia, e estabelecia com eles uma relação de íntima amizade, que, como sabemos, implica compreensão profunda,
entreajuda, respeito e, justamente, liberdade.
Outra palavra que associo à
tia Lena, que determinou, a certo ponto, que a nossa imediata simpatia se
tornasse verdadeira amizade (e a familiaridade com que me autorizou a chamá-la “tia”)
é um nome de mulher: Cesária. A Zazá, como lhes chamávamos os dois, era a
costureira de casa da tia Lena e por coincidência, era-o também em casa dos
meus avós paternos. E tão íntima era a relação de ambas as famílias com a Zazá,
que foi ela a vestir o corpo da mãe da tia Lena, prematuramente desaparecida,
como foi ela também, anos mais tarde, a vestir a tia Lena de noiva. A Zazá, que
era tão nossa também, que repousa junto aos caixões dos meus avós, no jazigo de
São Pedro do Sul. Pela Zazá – e por mim, entre muitos outros – rezava a tia Lena
todos os dias e eu passei a seu “sobrinho” por parte da Zazá. Dela e de uma
afinidade imensa que nos unia, para além de todas as palavras.
Liberdade e Cesária, dois femininos
singulares, como absolutamente feminina e singularíssima foi Maria Helena
Portugal. Feminina, no que de mais forte há no termo, nessa grandeza discreta
com que soube estar ao lado de um grande homem, o Professor Roberto Barchiesi,
um dos pioneiros e figura maior da lusofilia em Itália, a partir da prestigiada
Orientale de Nápoles. Feminina, como
filha e irmã, sobretudo como mãe firme e amorosa do Paolo, do Alessandro e da
Daniela, como avó da Valentina e do Riccardo. Feminina, enfim, como mulher de
uma beleza e de uma elegância que pareciam contraponto perfeito da agudeza do
seu espírito, da profundidade da sua inteligência, da sua generosidade. Cristã
no sentido completo do termo, identificada nessas sabedoria e bondade, mas
também no sofrimento, que suportou sempre com uma dignidade de rainha.
Ocorreria fazer um estudo completo
sobre a sua actividade académica, através da qual ao longo de quase sessenta
anos contactou com centenas de alunos, definitivamente marcados pela sua
personalidade. Maria Helena Portugal é daqueles raros exemplos a quem não se ouve
nunca, a ninguém, falar senão com entusiasmo e reconhecimento. Talvez também
porque a ela mesma nunca ouvi senão dizer bem de todas as pessoas de quem
falava, embora talvez não falasse de todas as pessoas que conheceu. No Portugal
da sua juventude e depois em Roma, na Sapienza
e no Instituto Português de Santo António – onde, com o marido, estruturou e
dirigiu durante mais de 40 anos os cursos de língua e cultura portuguesas – ela
era, realmente, uma Mestre. Começava a ensinar português aos estrangeiros com
as primeiras estâncias d’Os Lusíadas;
explicou-me: “estão ali concentradas as sonoridades fundamentais da nossa
fonética”.
Não me apetece imaginar este mundo
sem Maria Helena Portugal. O meu mundo fica irreparavelmente mutilado, sem o
nosso telefonema semanal em que se falava das mais diversas coisas, se diziam
poesias e anedotas e se cantava e se acabava sempre a rir (o seu humor era bem
digno da sua inteligência). Maria Helena sem este mundo, ficará sem dúvida
aliviada das dores e das preocupações que a tolhiam, e encontrará enfim aquela
leveza ampla e luminosa que tanto condizia consigo e que me apetece chamar –
rimando com eternidade – de LIBERDADE.
Francisco de Almeida Dias