ALVO
Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfíciedas tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sonodemente na fissura da luz; do violento voo ou feridacíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desorasperfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,o verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,no fundo do poço até desaparecer na cama muda.Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digoos dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dosdestroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-onum gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho – a históriade um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-meo que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.
Ana Marques Gastão
In Nós/Nudos, Gótica, 2004
Ana Marques Gastão nasceu em Lisboa, em 1962. É poeta, crítica literária e redactora cultural do Diário de Notícias, tendo trabalhado antes no Diário Popular e na revista Face.
Reconhecida como uma voz peculiar entre os novos poetas portugueses, integra várias antologias e tem representado Portugal em diversos eventos internacionais.
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