Médico neurocirurgião, "Príncipe da Medicina".
João Lobo Antunes morreu aos 72 anos, vítima de cancro. Era atualmente
presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
MIGUEL A. LOPES/LUSA
“Brilhante”. “Príncipe da Medicina”. “Fascinado pelo
mistério da vida”. “Grande intelectual”. “Grande português”. “Um dos melhores”.
Assim era João Lobo Antunes, nas palavras de quem privou com ele. O
neurocirurgião morreu, esta quinta-feira, aos 72 anos, vítima de cancro. Uma
doença que há mais de um ano já o tinha obrigado a afastar-se do bloco
operatório. Era, desde 2015, presidente do Conselho Nacional da Ética para as
Ciências da Vida (CNECV).
Nascido a 4 de
junho de 1944, no seio de uma família da alta burguesia, desde muito cedo que
João Lobo Antunes manifestou um gosto especial pela leitura, pela escrita e
pelo estudo. Sentia-se mesmo um “Frade Cartuxo”, nos anos em que mais estudava.
“Começava às nove, com o sino da igreja, acabava à uma com o sino da igreja,
recomeçava às três com as três badaladas, acabava às oito badaladas, recomeçava
às nove e acabava às 23h00. Dia, após dia, após dia. Sábado e domingo
descansava. Era muito obsessivo”, recordou, em entrevista ao Jornal de Letras.
Chegou a ficar em casa a estudar enquanto a mãe os irmãos iam de férias.
E foi desta
dedicação que colheu frutos. Aluno exemplar do Liceu Camões, em Lisboa,
acabaria a licenciatura em Medicina pela Universidade de Lisboa, em 1971, com
uma média de 19,47. Quando terminou o curso exerceu clínica no Hospital Júlio
de Matos, mas, ao fim de três anos, rumou a Nova Iorque, onde trabalhou no
Instituto de Neurologia da Universidade de Columbia, entre 1971 e 1984. Foi também
lá que se doutorou.
Em 2006, em
entrevista ao Público, disse que, ao contrário de muitos, não seguiu Medicina
por querer salvar vidas. Foi para Medicina porque era o que melhor se adaptava
ao seu “tipo intelectual e temperamental”. Afirmou, sem problemas, que foi a
Medicina que o fez médico. “A Medicina assim o quis.” E na última aula que deu
— intitulada “Uma vida examinada” –, em 2014, voltou a falar, em jeito de
graça, dos “genes da Medicina”, mostrando a árvore da sua família e concluindo
que Medicina era a “profissão dominante de penetrância variável”.
Da falta de jeito com as mãos, ao prazer de operar
Segundo de seis
filhos, João Lobo Antunes nasceu numa família de médicos. Em entrevista a Maria
Leonor Nunes e ao Jornal de Letras, em outubro de 2015, recordou que foi o pai,
neurologista, quem mais o encaminhou na profissão. “Não há dúvida que teve
importância, o meu pai. De seis filhos rapazes, três foram para Medicina, três
para a área das neurociências. Vivia-se o cérebro naquela casa.”
“Mas João Lobo Antunes esteve para fazer marcha atrás. “A
certa altura pensei em ir para cardiologia porque achava a mais a matemática
das especialidades. Por outro lado, desapontava-me a ineficácia, a impotência
terapêutica da neurologia. Isto há 50 anos.”
Outra razão que
quase o levou a afastar-se da neurocirurgia foram as mãos. Isso mesmo. Lobo
Antunes confessou ao Jornal de Letras ser pouco “dotado” num ofício que exige
“elegância”. “Desenhava com algum talento [na infância], modelava, esculpia,
mas não era dotado de mãos habilidosas. Era, portanto, um enorme desafio ir
para neurocirurgia e perguntava-me mesmo se seria capaz de usar as mãos para
operar. Curiosamente, quando opero, do ponto de vista técnico e gestual, estou
mais próximo do pintor, o bisturi mais perto do pincel do que da chave de
fendas. (…) A pouco e pouco, consegui dominar bem as duas mãos. São a guitarra
e a viola. E comecei a ter um prazer quase sensual no ato da cirurgia e um
conceito estético“, descreveu.
Dedicou a sua
carreira principalmente ao estudo do hipotálamo e da hipófise. O cérebro era
para ele “sagrado” e, como tal, devia ser tocado “com rigor e especial
delicadeza”. Nos Estados Unidos aprendeu a doutrina de tirar um tumor sem tocar
no cérebro, o que nem sempre era possível. Lobo Antunes foi o primeiro médico a
implantar o olho eletrónico num cego, em 1983. Depois dele, seguiram-se 15
operações do género, permitindo aos doentes ver algumas formas e distinguir
certas cores.
“Foi uma das
figuras que mais marcou a saúde em Portugal, a ciência e a investigação
biomédica”, realçou o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, após a
notícia da morte do médico, com quem trabalhou no Hospital de Santa Maria, em
Lisboa. “Foi um verdadeiro visionário. Um dos maiores do nosso tempo.”
No outro lado do
Atlântico, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lembrou Lobo
Antunes como “uma figura ímpar” e “um grande académico, um grande intelectual,
com uma cultura vastíssima”. Em visita de Estado a Cuba, o chefe de Estado
português lamentou a morte do “amigo”, “uma figura cimeira no domínio da saúde
e da ética das ciências da vida”, “respeitado por toda a sociedade portuguesa”.
Por cá, o
ex-presidente da República, Cavaco Silva, revelou ter ficado “profundamente
consternado”, destacando a “amizade e estima muito especiais” que os ligava. O
primeiro-ministro António Costa reagiu à morte do médico, falando numa “grande
perda para a ciência em Portugal”. Assunção Cristas, em nome do CDS, apresentou
“à sua família e à Universidade de Lisboa os profundos sentimentos, na
convicção de que nunca morre quem deixa uma obra e uma vida tão fecundas”. E o
PSD, em comunicado, frisou o “legado” deixado por “um dos mais brilhantes
médicos e docentes universitários portugueses”.
Quem também decidiu
deixar uma palavra nesta hora foi Salvador de Mello, presidente da José de
Mello Saúde, lastimando “profundamente a morte de um dos nossos maiores, tanto
em termos profissionais como pessoais”. “João Lobo Antunes faz parte da alma da
CUF [o médico trabalhou no Hospital CUF Infante Santo desde o início da sua
carreira, em 1968], como reputado neurocirurgião e cientista.”
Lobo Antunes, o “elegante”
O patologista
Sobrinho Simões dirigiu-se ao neurocirurgião como “um exemplo”; a ex-ministra
da Saúde, Maria de Belém, “completamente devastada” falou do “amigo fabuloso”
como um “Príncipe da Medicina e da cultura portuguesa” e o ex-ministro Correia
de Campos afirmou que o “inovador” Lobo Antunes “podia ser tudo aquilo que
quisesse”.
Já o diretor geral
de Saúde, Francisco George, falou em “personalidade absolutamente ímpar, o
melhor da nossa geração”; o bastonário da Ordem dos Médicos descreveu-o como
“alguém que desbravou caminhos na Medicina, mas também na ética e na
literatura”; e Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa, destacou
o “legado impressionante” do médico e a “elegância, no trato, na maneira de
estar com as pessoas, na maneira de se relacionar, mas ao mesmo tempo, uma
enorme firmeza”.
Sampaio da Nóvoa
não foi, aliás, o único a falar na elegância de Lobo Antunes. Quem melhor o
conhecia não o recorda só como profissional exemplar. Enaltece nele outros
traços de personalidade. É o caso de Cíntia Águas, secretária executiva do
CNECV, com quem trabalhava há uma década: “Era um homem de uma elevação
intelectual extraordinária, um homem conhecedor, um Príncipe da Medicina e das
letras. Mas destaco a elegância de pensamento e no tratamento das pessoas e o
sentido de humor finíssimo do professor”. “Era curiosíssimo sobre os outros, um
juiz de caráteres”.
E era mais do que
isso. Era uma pessoa preocupada com a dignidade e a ética. A esse propósito,
Salvador de Mello recordou-o “naquela que terá sido a sua última entrevista: ‘O
mais importante que tentei ensinar foi que a medicina não pode perder a sua
face humana.'”
Lobo Antunes nunca
esqueceu os seus pacientes e as histórias deles. E nunca abandonou a questão da
ética, tendo chegado a presidente do CNECV em 2015. Por várias vezes falou
publicamente sobre a dignidade da vida humana e debateu alguns dos dilemas do
final da vida e da morte. Quando a polémica eutanásia começou a ser falada, ele
recusou a ideia de um referendo e preferiu sempre focar-se na importância dos
cuidados paliativos, antes mesmo de se falar da eutanásia.
Mas João Lobo
Antunes não era só médico. Foi professor catedrático na Faculdade de Medicina
da Universidade de Lisboa até junho de 2014, altura em que se jubilou. A
despedida ficou marcada por uma última aula que era para se chamar “Última
lição”, mas que o mesmo intitulou de “Uma vida examinada”. O auditório Egas
Moniz, da Faculdade de Medicina, encheu-se para ouvir o professor despedir-se e
o discurso de Lobo Antunes foi aplaudido de pé durante minutos, por uma plateia
de luxo. Foi o adeus a 30 anos de ensino e também a 30 anos de Serviço Nacional
de Saúde (SNS) e do Hospital de Santa Maria, onde era diretor do serviço de
neurocirurgia.
Mas não foi o adeus à profissão.”Enquanto as mãos me
obedecerem e o cérebro souber mandar eu vou continuar”, prometeu Lobo Antunes,
em jeito de remate. E continuou, até que o corpo deixou de lhe obedecer, por
conta de um melanoma que o atormentava há anos e que o obrigou a afastar-se dos
blocos no ano passado.
Outra das paixões
que o acompanhou toda a vida foi a da escrita. Em 2015, na mesma entrevista ao
Jornal de Letras, revelou que assumiu “sempre a escrita como atividade paralela
da minha vida clínica”. E foi o cérebro que lhe alimentou a escrita. E não
apenas o seu. “Ao longo destes anos em que fui cirurgião do cérebro recolhi
muitas memórias e histórias. Certamente foi a esse manancial, a esse tesouro,
que fui buscar muito material para o que escrevi.” Escreveu nove livros e uma
biografia de Egas Moniz, sem nunca dar o salto para o romance, unicamente por
“pudor”. “Acho que nunca seria capaz de escrever uma novela ou um conto.” No
final do ano passado estava a escrever as suas memórias, uma forma de se
ocupar, porque já não tinha de ir todas as manhãs para o Santa Maria, coisa que
lhe “dava enorme prazer”. “Decidi que ia entreter-me com a minha inteligência.”
João Lobo Antunes
gostava de contar histórias e contava-as bem. As entrevistas que foi dando em
vida provavam que não lhe falta jeito, nem histórias. Um exemplo foi o episódio
que relatou, em entrevista ao Diário de Notícias, em 2001, ano em que, já
adultos, ele e o irmão mais velho António Lobo Antunes voltaram a partilhar o
quarto da meninice. “Este ano aconteceu-me uma experiência extraordinária:
voltei a dormir num quarto com o meu irmão António. Era preciso dormir e era o
quarto que havia. Sei que ele se levantou, eu estava ainda meio a dormir,
passou por mim e fez-me uma festa no cabelo. Irmão mais velho. E eu tive de lhe
tirar os óculos porque ele tinha adormecido com o livro e tinha a luz acesa.
Fechei a luz, e depois dormimos, claro. Havia qualquer coisa de simbólico. De
regresso. As camas eram as mesmas, de solteiros, e cabíamos ainda.”
Aos nove livros,
mais a biografia, que escreveu — somam-se mais de 180 artigos científicos e
alguns ensaios. João Lobo Antunes foi ainda mandatário das candidaturas a
Presidente de Sampaio e de Cavaco e desde 2006 que integrava o Conselho de
Estado.
Os prémios e distinções
Lobo Antunes foi distinguido com vários prémios nacionais
e internacionais, dos quais se destaca o Prémio Pessoa, em 1996. Foi ainda
laureado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, em 2004, com a
Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, em 2014, o Prémio Nacional de
Saúde em 2015 e a 25 de abril deste ano recebeu das mãos do Presidente da
República a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
O neurocirurgião
foi também vice-presidente para a Europa do World Federation of Neurosurgical
Society, presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia, presidente do
Conselho Superior de Ciência, Tecnologia e Inovação e da Sociedade de Ciências
Médicas de Lisboa e da Academia Portuguesa de Medicina.
E ainda uma nota
para a terceira paixão que Lobo Antunes foi dando a entender nas entrevistas
que deu: as mulheres. Descrevia-as como “um mistério”. “Se calhar porque eu
próprio sou capaz de ter um temperamento feminino nalgumas coisas, não me custa
admitir. Tenho uma sensibilidade feminina. Há uma superioridade biológica na
mulher, na aparente fragilidade. É um tempero de emoção e inteligência, (…),
que a mim me agrada mais.” E talvez por isso se tenha apaixonado tão cedo:
“Tinha seis ou sete anos. Comecei muito cedo. Depois vi nas Aventuras do Tom
Sawyer ele próprio a fazer macaquices para encantar uma, Amy, se bem me lembro:
dependurado no braço da árvore, fazendo o pino, etc. Aquelas demonstrações do
macho, do pavão, muito jovem e muito inocente, que abre a cauda. Percebi que
aquilo era muito biológico”.
Em entrevista ao
Expresso, no final de 2015, Lobo Antunes citou Montaigne para dizer que “todos
os dias conduzem à morte”. “O que assusta é a morte interromper a dádiva da
vida.” Esta quinta-feira foi assustadora para muitos dos seus familiares,
amigos e admiradores. A vida de João Lobo Antunes foi interrompida pela morte.
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