Tanto o Gianfranco
Ravasi como José Tolentino Mendonça foram pescados à linha por Deus que um dia
olhou para eles como costuma olhar para os escolhidos. Que como se sabe são bem
menos que os chamados.
1. “Nada acontece
até ser contado” dizia Virginia Woolf que muito contou e bem contou. Tinha
razão: o contar pode transformar um quinhão de vida num acontecimento. E se
desistirmos contar, que outro destino para o não contado que um poço vazio?
Penso muitas vezes nisso. Penso de cada vez que venho ao de cima de qualquer
coisa que de imediato me sinaliza que há que contar. Contar sem que importe
definir o fio – intuição? impulso? — que nos conduziu. Importa antes que o
desatar do fio tenha trazido consigo aquilo que de tão misterioso altera a
natureza das coisas, fazendo delas um “acontecimento”. E tanto faz que ele seja
privado, pertença apenas a alguns, ou a todos: o que conta é o poder
transformador do contar.
O escritor holandês
Cees Nooteboom de quem leio agora um diário (“533 dias”, Siruela, Espanha)
também se interrogava sobre isso mesmo: “como descrever algo que para o mundo
nunca contaria como um acontecimento mas para nós, sim?”
Não preciso porém
de recorrer à história dos 533 dias que Nooteboom passou na sua amada casa da
ilha de Minorca para classificar de “acontecimento” uma noite inclassificável
que testemunhei há dias e merece ser contada.
Passando eu agora a
voluntária mensageira dessa noite.
2. Foi a meio de
Julho na Capela do Rato. Alguém — ignoro quem — se propôs homenagear o poeta
José Tolentino Mendonça celebrando a sua poesia e cantando-lhe os seus versos.
Contar o límpido
momento que lá se viveu, fá-lo ter acontecido. Foi emotivo, profundo, íntimo.
Escolhidas por Leonor Xavier — “encenadora” do límpido momento — vinte e cinco
pessoas “muito diversas”, encontradas no mar dos crentes ou nas águas dos não
crentes, tornaram-se, com a sua voz, parte desta celebração, ramos da mesma
árvore, veios da mesma folha.
Anunciadas por mera
ordem alfabética e sem mais indicação que a sua profissão, cada uma dessas
pessoas “diversas” subiu três degraus de madeira e por entre a espessura de um
silêncio que parecia não ter fundo, nem fim, leu, murmurou ou disse as palavras
do poeta. Escolha livre, sem ensaio prévio, nem prévia combinação: “tragam um
livro do Tolentino e leiam um poema” apenas dissera Leonor.
Antes, ouvira-se,
breve, uma flauta; depois, plangente, uma guitarra. Aconteceu assim. Numa
intimidade só possível e entendível por estar tão enrolada na raiz silenciosa
do que ali se queria dizer.
3. Há muitas
espécies de silêncios, sabemos bem, e mesmo que nenhum ecoe do mesmo modo,
nunca será demais evocar o que mora na Capela do Rato. É um silêncio só de lá.
Seja a abarrotar de pessoas nas celebrações religiosas, ou vazia de gentes e
almas; seja numa simples missa dominical ou em participados encontros
espirituais ou culturais, há a mesma recolhida atmosfera, tingindo os dias
desta Capela. Lembra os lugares dos primeiros cristãos, rezando escondidos e
talvez atordoados pela sua nova condição de desafiantes de outra ordem; lembra
a dureza da procura, a alegria do caminho encontrado, a perda, a pena, a luz, a
chegada. Lembra muitas e contraditórias coisas ao mesmo tempo, é um silêncio
fértil.
Sou desde há largas
décadas frequentadora intermitente desta Capela. Quando pela primeira vez lhe
bati à porta não o fiz por razões políticas (detestaria refazer a história) mas
por ser seguidora e ouvidora do verbo lúcido e admiravelmente inspirado de quem
lá oficiava nos idos de sessenta do século passado, o Padre Alberto Neto.
Salvou-me pelo menos uma boa parte da alma.
Depois, mesmo que
com intervalos ou ausências, nunca deixei de lá ir, e mais ainda com Tolentino
Mendonça. O que talvez salve o tanto que há para salvar.
4. Um dia do ano de
2012, no silêncio solitário das instalações da “sua” Capela, José Tolentino
Mendonça fez-me um convite temível: que eu fosse apresentar a Guimarães os
intervenientes da próxima reunião do “Pátio dos Gentios” que nesse ano
ocorreria em Portugal, depois de já ter passado em anos anteriores por diversos
lugares europeus. O Pátio fora uma ideia nascida da inspiração, visão e vontade
do Cardeal Gianfranco Ravasi para desbravar o diálogo entre crentes e não
crentes e Ravasi seria justamente o “protagonista” desse do encontro. Figura
tão fulgurante merece ser aqui contada, mesmo que fugazmente. E a sua
proximidade e interligação tão profunda com Tolentino torna-me esse contar
ainda mais obrigatório: ordenado Padre em 1966 na Diocese de Milão com 24 anos,
loquaz e vivíssimo, brilhante aluno e depois brilhante professor em Exegese
Bíblica, intelectual irradiando em mil direcções do saber, perito biblista e
hebraísta, gostando de inovar e inovando, Gianfranco Ravasi cedo se tornou uma
referência na diocese, na Universidade, na própria cidade de Milão. Nomeado
Perfeito da Biblioteca Ambrosiana — um farol de cultura em toda a Itália –, a
escolha revelava um eleito mas o eleito provaria o acerto da escolha. É que o
grande teólogo e eminente biblista deixará luminosa assinatura na Biblioteca ao
revelar uma imensa capacidade de conciliar o conhecimento da Bíblia e das
raízes cristãs com a cultura, a arte, o saber literário. Fazendo pontes e
alcançando grandes — ou talvez mesmo inauditas — linhas de transversalidade.
Maestro de tão
diversas partituras, amassando o seu pão cultural com a Bíblia, escreveu sobre
a alma, contou-nos Jesus, ofereceu-nos leituras para todos os dia das nossas
vidas. Propôs-nos Deus.
Em 2007, já nomeado
Bispo por Bento XVI, Ravasi foi escolhido para presidente do Pontifício
Conselho para a Cultura, criado vinte anos antes por João Paulo II. Uma escolha
desafiante já que, em 1993, o Papa João Paulo decidira unir o “Conselho para o
Diálogo com os Não Crentes”, com o “Conselho da Cultura”, fundindo-os num mesmo
corpo institucional. Tratava-se agora de uma tarefa dupla e duplamente
exigente: o encontro entre a mensagem do Evangelho e os intelectuais das artes,
letras e ciências como homens e mulheres ao serviço do bem e do belo; e, por
outro lado, a proposta de diálogo entre pessoas que não tendo fé, sinalizavam
um sobressalto ou revelavam uma inquietação face ao transcendente.
A partir de então
foram-se gerando proximidades até aí supostamente sepultadas. Ergueram-se
pontes, abriram-se confluências.
Uma dessas
confluências chamou-se Pátio dos Gentios.
Um “Pátio” que, a
convite do Padre Tolentino, num dia de 2012 e em hora tão boa que mereceria ser
contada, me levou ao norte para apresentar à plateia de Guimarães um convidado
especial, o Cardeal Ravasi. (E João Lobo Antunes e Marcelo Rebelo de Sousa,
também oradores de um memorável encontro).
5. Porquê tudo isto
agora? Porque terei hoje, a propósito de Tolentino, procurado Gianfranco Ravasi,
movida por uma espécie de imperiosa necessidade de o trazer aqui? Afinal de
contas houve outras colaborações minhas com José Tolentino Mendonça (em que a
leitura de uma Paixão com Luís Miguel Cintra, na Igreja de S. Mamede, na Semana
Santa de 2016, não terá sido a menor delas).
Porquê então?
Talvez porque
simplesmente eu os tenha achado, ao Cardeal Gianfranco Ravasi e ao futuro
Arcebispo José Tolentino Mendonça, muito semelhantes, um ao outro. Na
radicalidade da entrega, na marca de uma mesma espiritualidade, no uso que
fazem da fé, na erudição e no brilho dos respectivos percursos, na
transversalidade dos universos onde se movem. Destino parecido o destes dois
homens que sempre operaram em nome de Deus na busca do absoluto.
Pescados à linha
por Deus que um dia olhou para eles como costuma olhar para os escolhidos. Que,
como se sabe, são bem menos que os chamados.
6. Este sábado, 28
Julho, dia em que na pedra antiga do Mosteiro dos Jerónimos o Cardeal D. Manuel
Clemente, Patriarca de Lisboa, o Cardeal D. António Marto e o Bispo Emérito do
Funchal, D. Teodoro de Faria procederão á ordenação episcopal do Arcebispo
Titular de Suava, Tolentino Mendonça, deixo um breve poema seu. Foi lido há
dias na Capela do Rato e é um ténue sopro, como o bater de asa de uma borboleta
num solitário entardecer de verão:
“Na corda bamba,
entre silêncio e silêncio, a vizinhança de Deus” (in “A Papoila e o Monge”,
Assírio e Alvim).