giovedì 2 agosto 2018

Morreu Celeste Rodrigues





Morreu Celeste Rodrigues, a fadista que foi muito mais do que a irmã de Amália

Irmã mais nova de Amália Rodrigues, iniciou a sua carreira, sempre autónoma, há 73 anos. Tinha 95 anos e nos últimos tempos tornara-se uma das preferências de Madonna. O velório é esta quinta-feira no Pátio da Galé, a partir das 19h, seguindo o funeral sexta-feira, às 14h30, para o Cemitério dos Prazeres.
Nuno Pacheco e Lucinda Canelas, 1 de Agosto de 2018

Foi o neto, Diogo Varela Silva, quem primeiro anunciou a morte da fadista Celeste Rodrigues, esta quarta-feira, aos 95 anos, confirmando depois a notícia à agência Lusa: “É com um enorme peso no coração que vos dou a notícia da partida da minha Celestinha, da nossa Celeste. Hoje deixou uma vida plena do que quis e sonhou. Amou muito e foi amada, mas, acima de tudo, foi a pedra basilar da nossa família, da minha mãe, da minha tia, dos meus irmãos, sobrinhos e filhos, somos todos orgulhosamente fruto do ser humano extraordinário que ela foi”, escreveu na rede social Facebook. O corpo da fadista será velado esta quinta-feira, a partir das 19h, no Pátio da Galé, em Lisboa (entrada pela Praça do Comércio), e o funeral sairá na sexta-feira, às 14h30, para o Cemitério dos Prazeres.

Nascida no Fundão, em 14 de Março de 1923, de onde saiu para Lisboa com apenas cinco anos, a irmã de Amália Rodrigues iniciou a carreira há 73 anos, ao aceitar o convite feito pelo empresário José Miguel (1908-1972), detentor de vários teatros e casas de fado, entre os quais o Café Casablanca. Mas foi a cantar canções tradicionais da Beira, ensinadas pela mãe, e os fados ouvidos na rua “aos ceguinhos”, como contava em 2014 numa entrevista ao PÚBLICO, que começou por ganhar uma voz que ficaria para sempre associada à linhagem do fado castiço. Da infância pobre que viveu na Beira Baixa retinha sobretudo a força da mãe e a presença musical do pai, “que tocava muito bem”, lembrava na mesma entrevista: “A pobreza: nem dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam também. Mas não dávamos por essa necessidade.”

A voz da mãe – e não a da irmã, Amália, três anos mais velha, e também para Celeste referência até hoje inultrapassável da canção de Lisboa – era, dizia, a mais bonita que ouviu na vida. Mas foi obscurecida pela sombra da irmã que se fez fadista, sem ressentimento algum: “Nunca se meteu na minha carreira artística, felizmente. Se não, eu tinha desistido. Canto à minha maneira, canto as minhas cantiguinhas. Como eu sinto. Nunca a imitei. Tentei fugir à maneira de ela cantar (...). Há tantos alfaiates. Eu não tinha de ser como ela.”

Casada, aos 30 anos, com o actor Varela Silva, abriu com ele uma casa de fados, A Viela, que viria a fechar ao fim de quatro anos, ingressando então Celeste Rodrigues no elenco da casa de fados de Argentina Santos, A Parreirinha de Alfama. Nos anos 1950, e já conhecida a nível internacional, actuou em diversos países: Espanha, Brasil, Estados Unidos e no continente africano. Gravou, ao longo da sua carreira, cerca de 60 discos, o mais recente dos quais Fado Celeste, em 2007. Colaborou, com entusiasmo, em vários projectos musicais, do fado à pop.

Do seu repertório constam, entre outros temas, A lenda das algas e o Fado das queixas. Apesar da longa carreira, nunca deixou de se sentir tímida em cima do palco (“Fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara”). E nem a confessa admiração de Madonna na sua nova fase lisboeta (a cantora norte-americana fez questão de tê-la consigo em Nova Iorque na passagem de ano) lhe tirava os pés do chão: “Parece que estou a fazer propaganda de mim própria e eu não gosto disso, nunca precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e é só isso”, respondia em Maio ao Diário de Notícias, nas vésperas de um dos seus últimos concertos, no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa.

Lucidez e vontade de viver

No concerto do Tivoli, na noite de 11 de Maio deste ano, Celeste Rodrigues celebrou 73 anos de carreira e 95 de vida, como já antes celebrara no São Luiz, em 21 de Dezembro de 2010, os seus já então respeitáveis 65 anos de carreira, numa demonstração de ímpar longevidade entre as vozes do fado. No Tivoli estiveram com ela os músicos Pedro de Castro, André Ramos, Francisco Gaspar e o seu bisneto Gaspar Varela, um jovem guitarrista, bem como vários fadistas (Teresinha Landeiro, Duarte, Hélder Moutinho, Fábia Rebordão, Jorge Fernando e Kátia Guerreiro). Um deles, Jorge Fernando, recorda-a agora deste modo: “Eu era muito chegado à Celeste, por via da Fábia [Rebordão, também fadista], estávamos durante a semana vários dias juntos. E sempre me fascinou nela a inteligência, a verdade, a lucidez, o canto, a vontade de viver. Ela, com 95 anos, tinha uma agenda de concertos e já queria repetir para o ano o concerto que deu no Tivoli em Maio. Foi convidada e íamos repeti-lo em Paris.”

Essa actividade, diz Jorge Fernando, é uma grande lição: “Para mim e para todas as gerações. Este é um momento muito triste para todos nós, porque sempre foi uma senhora pautada pelo rigor, pelo respeito, pela tolerância. Resta realçar que ela teve a vida que quis, foi feliz como quis, não teve grandes males a assolarem-lhe a porta. Deixa-nos saudades a todos.” Quanto ao lugar de Celeste Rodrigues no fado, Jorge tem esta opinião: “Sempre achei que ela esteve entre as melhores. A Madonna apaixonou-se por ela, o Egberto Gismonti, um dia quando estávamos a ouvir música no meu carro, perguntou-me ao ouvi-la: ‘Quem é? Que bem canta!’ Mas talvez parecesse pouco para o talento que ela tem.”

Hélder Moutinho, outro dos fadistas que estiveram no Tivoli naquela noite, tem de Celeste as melhores memórias: “No início da minha carreira, eu quis deixar de cantar. Trabalhava com ela na Taverna do Embuçado e despedi-me, desmotivado e zangado com os fados. E a Celeste, durante um mês, insistiu comigo que eu não podia deixar de cantar. Disse-me que eu não podia deixar o fado, porque o fado precisava de mim.”

Esta atitude para com os fadistas mais novos era uma constante na sua vida, diz Hélder: “A Celeste é provavelmente a pessoa da geração mais antiga que mais apoiou e incentivou a nova geração em relação ao fado. Não havia ninguém da nova geração que não a tratasse por avó e a acarinhasse. Era a pessoa mais querida da velha geração, ela e o Joel Pina [histórico viola de fado e professor, com 98 anos, no activo], que ainda está cá connosco. Vai-nos fazer muita falta.”

Um reconhecimento que tardava

Rui Vieira Nery, musicólogo e estudioso do fado, corrobora esta opinião: “Muitos fadistas mais jovens pediam-lhe conselho e confiavam nos conselhos dela. Ela funcionava um bocadinho como uma matriarca respeitada pela tribo do fado, porque era uma pessoa carinhosa e sábia. Era uma voz que os jovens fadistas ouviam com respeito.” Já em relação ao seu papel no fado, diz que o facto de ser irmã de Amália a prejudicou. “Se fosse uma fadista completamente independente, sem ligações familiares a um grande nome, acho que teria tido oportunidades que não teve, porque as pessoas automaticamente a arrumavam na prateleira de irmã da Amália.”

Mas o mérito de Celeste Rodrigues acabou por ser reconhecido nos últimos anos, diz Rui Vieira Nery. “Ela era uma mulher com uma personalidade artística muito forte, uma capacidade dramática muito intensa, que teve a ‘infelicidade’ de ser irmã da Amália e de isso ter desviado a atenção do público, durante muitos anos, do talento especial e próprio que ela tinha. No fundo, foi já nos últimos 20 anos, depois da morte da Amália, que as pessoas de repente olharam para a Celeste como uma personalidade autónoma, sem a sombra do nome e da fama da irmã. E ganhou, no fim da vida, um reconhecimento que tardava.”

Um comeback no palco do São João

O encenador Ricardo Pais, que se lembra bem de ouvir Celeste Rodrigues ao vivo na década de 60 na Parreirinha de Alfama, de Argentina Santos, dirigiu-a já nesses últimos 20 anos de vida em Cabelo Branco É Saudade, espectáculo que se estreou no Teatro Nacional de São João, no Porto, em 2005.

Na altura com 82 anos, era a mais velha de um elenco de quatro cantores (com Argentina, Alcindo de Carvalho e Ricardo Ribeiro) dessa produção que pretendia colocar sob os holofotes o universo singular das velhas casas de fado e os intérpretes de excepção que nelas se podem encontrar, tantas vezes tão injustamente esquecidos ou relegados para um plano secundário.

“Ouvi-a nos anos 60 e o seu timbre era completamente diferente, claro, mas uma coisa mantinha-se até hoje – uma espantosa técnica no uso da voz”, garante o encenador. Uma técnica a que recorreu ao longo da vida para ir ultrapassando as fragilidades que a idade lhe impunha.

“O Cabelo Branco É Saudade foi o seu comeback e, para parte do público, a parte mais jovem, foi até uma revelação”, acrescenta, recordando a recepção especialmente carinhosa que a fadista teve nalguns palcos da digressão internacional do espectáculo, em cidades como Paris, Nápoles ou Frankfurt.

“Era uma pessoa extraordinária, culta, que pintava e tinha uma grande facilidade com as línguas. Era óptimo trabalhar com ela, um prazer.” Durante a preparação de Cabelo Branco É Saudade, que teve direcção musical de Diogo Clemente, a única coisa a que Celeste Rodrigues resistiu foi a cantar Meu corpo, um tema com letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Fernando Tordo, composto para Beatriz da Conceição. “Dizia que era demasiado erótico para alguém com a idade dela, mas acabou por cantar. Convenci-a num elevador, mas para isso até tive de cantar uma parte do fado”, conta.

Para o encenador, Celeste Rodrigues sempre soube lidar com o facto de ser irmã de Amália Rodrigues e acabou por construir “uma carreira fantástica” e singular, original. “Era, definitivamente, pelo menos tão única como ela [Amália].”

Com um “reportório irrepreensível”, de “imenso bom gosto”, Celeste Rodrigues tinha outra particularidade que, segundo Pais, era evidente – “uma crença espantosa, profunda, no fado como género e como forma de vida”.

Ninguém como ela

Também o cineasta Bruno de Almeida, que nos 90 anos da fadista lhe fez uma homenagem em vídeo em que ela aparece a cantar, como não podia deixar de ser, rodeada de talentos do fado que a têm como referência – uns consagrados mas muitos mais novos do que ela, outros ainda jovens promessas –, garante que não há ninguém comparável a Celeste Rodrigues. A voz, a maneira como cantava (de cabeça para trás, muito direita), o reportório que escolhia, mas sobretudo a sua personalidade, que a levou a lidar de “forma muito inteligente” com o facto de ser irmã de Amália, asseguraram-lhe uma “carreira muito própria, bonita”.

“A Celeste percebeu desde muito cedo que a irmã era um génio, mas nem por isso deixou de fazer o que ela mais queria – cantar”, diz o realizador, que conheceu as duas quando era ainda criança e que desde aí e até à morte da fadista teve sempre uma “relação muito especial” com Amália. “Conheci a Celeste ainda criança na casa da irmã, porque eram muito chegadas, muito amigas, mas só me aproximei mais dela depois de a Amália morrer”, continua.

Segundo Bruno de Almeida, estas duas irmãs muito diferentes tinham em comum uma intuição e uma inteligência fora do normal. “A interpretação da Celeste era mais contida, talvez por causa da timidez. Ela foi sempre uma artista – uma pessoa – de grande honestidade. Teve um percurso sólido, vertical, que foi feito à margem da irmã, com as suas próprias escolhas e sem qualquer mágoa.”

Conta o realizador que era impossível jantar com Celeste Rodrigues sem a ouvir cantar – “Começava a bater na mesa, com aquela cadência das canções da Beira Baixa que ela gostava de cantar” – e a contar histórias sobre as gentes do fado ou sobre como nos anos 40 e 50 comprava poemas avulso aos autores que andavam pelos cafés do Chiado para poder interpretar temas diferentes dos outros. “A Celeste era uma bíblia do fado, que cantava de uma forma muito interior, muito dela.”

A fadista integrou o elenco do seu último filme, Cabaret Maxime (já nos anos 90 entrara em Xavier, de Manuel Mozos) e, sem esforço, diz o cineasta, fez com que todo o elenco se apaixonasse por ela. “Uma noite com a Celeste era uma lição de vida. Durante a rodagem chegámos a jantar às 5h da manhã, porque ela tinha a energia de uma mulher com 20 anos. Era muito particular.” E, para ilustrar o que diz, pergunta quem se não ela é que aos 90 anos deixa de fumar três maços por dia, porque finalmente decidiu acatar os conselhos do médico. “Aos 94/95 a Celeste era capaz de se meter sozinha num táxi de madrugada para ir cantar ao Luso, de onde saía depois para acabar na Mesa de Frades. Que outra pessoa faz isto?”

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