Zum-pim-zim!
Um banquete aerofuturista
Um banquete aerofuturista
Clelia Bettini
Referência de toda a arte de Vanguarda, o Futurismo italiano propugnou uma radical renovação dos hábitos de vida, que foi muito além da literatura, da pintura, da escultura ou do cinema. Alargou-se também ao vestuário, à dança, à prática desportiva ou à... alimentação. A XI Semana Cultural da UC celebrou o centenário do Manifesto de fundação do Futurismo com um Banquete aerofuturista, Zum-pim-zim!, realizado no Hotel Astória.
A designação Zum-pim-zim! tem um enquadramento bem coimbrão. Foi retirada de Coimbra Manifesto 1925, um manifesto futurista publicado por quatro estudantes da Universidade, nesse mesmo ano. Teve um impacto tal, que serviu de título ao artigo do Diário de Lisboa que, a 13 de Março de 1925, descrevia as agitações e o escândalo causados pelos quatro vanguardistas, “Zum-pim-zim! O Príncipe de Judá fala ao Diário de Lisboa sobre a nova escola futurista”.
Este mesmo manifesto futurista, juntamente com um outro já anteriormente publicado em Coimbra, no ano de 1916, pelo estudante de Direito Francisco Levita, Negreiros-Dantas. Uma página para a história da literatura nacional, foram editados e estudados por Rita Marnoto, no livro que o actor e encenador João Grosso lançou, literalmente, com todo o rigor e elegância, no início da sua performance. A declamação dos manifestos foi acompanhada por quatro aspiradores industriais, um dos quais tocou uma pequena sinfonietta para harmónica.
O espaço do Hotel Astória assistiu então à exploração cénica das suas galerias, das suas passagens e dos seus recantos, por um grupo de actores que conduziu o público através de uma experiência multi-sensorial desusada: mudar a nossa ideia de comida, celebrar a ciência química que desperta as papilas, sentir tudo, simultaneamente, sem preconceitos, na entrega a uma verdadeira experiência futurista.
O primeiro efeito-surpresa foi um delicioso aperitivo azulado, denominado Blue Sky na Boca, servido numa proveta gelada por jovens vestidos a rigor, quase a deslizarem sobre rodas. Olhos hesitantes e curiosos obrigaram tímidas bocas, que não escondiam o receio de serem envenenadas, a beberem o estranho líquido. Recobrada a confiança, o público foi empurrado para a sala de jantar, envolvido numa nuvem perfumada de alfazema. «Para favorecer a degustação, cada prato tem de ser precedido por um perfume», asseveravam os futuristas. E assim se deu início ao Banquete aerofuturista, 100 ans après...
Salsichas químicas e maliciosas, uma escultura de corpo de mulher que foi sendo degustada por partes, lembraram, simultaneamente, aquilo que uma actriz vestida de damasco tinha contado pouco antes, a história de um banquete futurista que Marinetti e os seus companheiros prepararam para Giulio Onesti, um amigo à beira do suicídio: 22 mulheres lindíssimas e edíveis, que Giulio logo devorou com volúpia, reencontrando a sua serenidade futurista. O cuidado artístico, e até filológico, depositado na preparação e na encenação deste aerobanquete coimbrão ficou consagrado no subtítulo do livro Cozinha Futurista de F.T. Marinetti: Um almoço que impediu um suicídio.
Depois das primeiras iguarias, a música regressou, porque «o uso da música nos intervalos entre os diferentes pratos [...] serve para restabelecer a virgindade degustativa» — Marinetti dixit. Essa receita proporcionou a experiência mais futurista da noite. Foi então distribuído um prato composto por elementos de cor viva, ao mesmo tempo que eram dadas imperativas ordens para que não fosse degustado antes de serem recebidas as necessárias instruções. Tratava-se de um típico pitéu «simultâneo e irisado» futurista. Cada conviva tinha à sua frente um ovo de codorniz estrelado, um castelo de atum marinado com mostarda e uma torre de cenoura, acompanhados por um aviãozinho de pão. Depois de uma contagem até três, todos teriam de atacar, simultaneamente, o prato do vizinho, com o avião, de forma a destruir as suas deliciosas fortificações.
Seguiu-se a declaração mais anticonformista da cozinha futurista de Marinetti, «a abolição da pasta, absurda religião gastronómica italiana». Quando, do alto do varandim do imponente salão do Astória, os actores se manifestaram, com palavras firmes e uma postura algo arrogante, contra a pasta italiana, passadista e obsoleto ingrediente que entorpece os engenhos, logo se levantaram as vozes de protesto de alguns comensais apreciadores de massa, sopa ou de um bom prato de bacalhau, recriando um autêntico confronto futurista.
Experiências simultâneas de ruídos, sabores, texturas e cheiros animavam o ambiente. Pedaços de comida, como Marinetti queria, nos quais se injectaram sumos misteriosos com seringas hospitalares, embalagens de pasta medicinal com mousse de chocolate, paletas de pintor... O cepticismo algo preocupado do início da noite derreteu-se, fazendo regredir os participantes nesta intensa performance artística até ao seu antigo status de criança, tal como tinha sido previamente anunciado pelos actores, logo de início.
Foi por essa altura que quem escreve, mais um punhado de pessoas que partilham a condição de terem nascido entre as décadas de 1970 e 1980, encontraram numa travessa de fina porcelana uma das brincadeiras mais populares da sua infância urbana: colocar a língua, simultaneamente, nos dois pólos de uma bateria, e sentir o Electric Boogie-Woogie, dança de music-hall eléctrica e química, como o cardápio futurista bem o requeria. Depois de pintar o auto-retrato numa tela comestível, cada conviva experimentou, então, devorar-se a si próprio, deliciosamente. Para terminar, um creme de café incendiário, denominado Aerofogo, sorvido enquanto se tocava num quadrado de veludo e numa lixa, condensou a síntese entre gosto, vista e tacto.
Com Zum-pim-zim! recordou-se, pois, da melhor maneira, o centenário do Manifesto de Fundação do Futurismo. Peter De Bie, Giacomo Scalisi, João Grosso, um grupo de actores, alguns dos quais entraram para o mundo do teatro através da AAC, os estudantes da Escola de Hotelaria de Coimbra e o público do Hotel Astória tornaram possível uma experiência deliberadamente efémera e única. De resto, nem o próprio Darwin teria zarpado de Davenpoort, a bordo do Beagle, para uma viagem que mudaria o curso da ciência, nem Francisco Levita teria proclamado que quem se preocupava com Júlio Dantas era um Dantas nº 2, nem os estudantes de Coimbra teriam tido a força de se manifestarem num 1969 de chumbo, se não acreditassem no poder do sonho e da fantasia.
Ao integrar nas celebrações dos seus 715 anos este espectáculo de vanguarda, a Universidade de Coimbra ofereceu um exemplo de verdadeiro exemplo de optimismo futurista.
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CLELIA BETTINI é leitora do Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A ela, e à Professora Doutora Rita Marnoto enviamos os nossos agradecimentos pela informação e pelas imagens do aerobanquete futurista, de que anteriormente tínhamos dado notícia em via dei Portoghesi.
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1 commento:
Bellissimo... ma devo dire...eviva la pasta!!!!
Mariangela Giaimo
Montevideo
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