O nosso aluno Stefano Valente volta a surpreender-nos com um belíssimo texto em que a realidade e a ficção se entretecem... Um português e um espanhol que falaram francês na Paris dos anos 60, e cujo encontro Stefano reinventou à medida da sua fantasia... Muito obrigado!
Mesmo pensamento em Paris
Quatro da manhã. Ou da noite. Depende de quem está a falar – a contar – : se ele é um matemático insone ou um expatriado mordido pela saudade. (Para sermos sinceros, ambos os heróis dessa historiazinha – que é apenas a história de um momento, de dois pensamentos simultâneos – são exilados, fujões, embora de maneiras diferentes.)
Quatro da manhã – da noite. Secundí está a trabalhar num seu antigo projecto: uma “aplicação oblíqua” (ele chama-a assim) do teorema de Gauss. À luzinha fraca do abat-jour posto na mesa da cozinha – para não despertar os outros inquilinos do minúsculo apartamento. Na realidade Secundí não consegue pegar no sono. Também esta noite. Vela – lê equações, escreve fórmulas –, vela e fuma.
Quanto fumaram antes! – agora pensa. Fumaram, ambos, mais do que beberem. O que não se fumou!... Cigarros, charutos – havanos sobretudo, pois que o Manuel só gosta daqueles, e tem insistido com Secundí para que também provasse, e Secundí rendeu-se, aceitou, e agora essa enxaqueca... não é boa para o Gauss oblíquo, seria melhor conseguir adormecer...
Mas é inútil – Secundí, o insone matemático, sabe-o bem. Apesar de tudo, acende outro cigarro, aspira forte, profundo. Enquanto uma voz de bêbedo ressoa pela calçada, e parece que trepa pelas paredes do velho prédio, que alcança a própria janela de Secundí e, logo depois, se perde em direcção ao Sacré-Coeur.
Assim Secundí não pensa mais na sua terrível enxaqueca, nem em teoremas. A mente volta-lhe à noitada que há pouco passou com aquele comunista português com verborreia de candidato presidencial, fumando havanos e imitando Che Guevara – ele, o portuga, o Manuel Alegre, com certeza não o Secundí –, mas Ernesto Guevara de la Serna, el Che, falava em espanhol... com o Secundí o portuga nem tinha tentado, nem sequer uma vez...
Francês. Entre eles só falaram em francês. É nisto que agora Secundí está a pensar. E embora aquilo seja Paris, França, talvez sinta um bocado de amargura – ou somente de desilusão. E assalta-o outra enxaqueca, diferente...
Quatro da manhã – da noite. Manuel Alegre acorda de sobressalto na sua cama. O eco da voz do bêbedo pelas ruas do arrondissement. Então o português boceja, livra-se devagar do abraço daquela rapariga cujo nome nem se lembra, torna a arranjar a boina na cabeça, senta-se aos pés do colchão, toma um pavio para reacender o havano.
O meio charuto, porém, fica apagado. Manuel Alegre, boquiaberto, neste momento perde-se a pensar porque não lhe ocorreu falar em espanhol com o Secundí – porque não quis, não quis com todas as suas forças.
E diz para si mesmo:
Nunca deixarão de chamar-me marialva...
STEFANO VALENTE
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