Reminiscência de Fernanda de Castro, in Trinta e nove poemas (1941)
« - ...Lisboa,
Santarém, Porto, Leiria...»
(eu sabia de cor toda
a corografia)
O senhor inspetor
deu-me a nota mais
alta em geografia
e disse gravemente:
« - Continua. Hás de
ser gente...»
« - … Ângulo reto,
agudo,
cateto,
hipotenusa...»
(Já manchara de giz a
minha blusa
mas respondia a tudo
e a professora sorria
enquanto eu
papagueava a geometria)
« - ... D. Sancho, o
Povoador,
D. Dinis, o
Lavrador...
(Tinha então boa
memória,
sabia as datas da
história...)
« - … 1380
1640
1143
em Arcos de
Valdevez...»
« - Muito bem, a
pequena é simpática,
Vamos lá à
gramática.»
« - ...E, nem, não
só, mas também...
conjunções
copulativas»
(Eu pensava na
alegria
que ia dar a minha
mãe,
nas frases
admirativas
da velha D. Maria,
a minha primeira
mestra:
«- Tão novinha e
ficou "bem"!»
E esta suavíssima
orquestra
acompanhava, em
surdina,
o meu primeiro exame
de menina
aplicada, orgulhosa e
inteligente...)
«- Vá ao quadro,
menina!» Docilmente
fiz os problemas,
dividi frações,
disse as regras das
quatro operações
e finalmente
O senhor inspetor
felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara
"distinta" sem favor.
Ah! que esplendor!
Que alegria total e
sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol
e a claridade
não me cegou.
As estrelas, fitei-as
como iguais.
Melhor: como rivais,
e a Humanidade
pareceu-me um rebanho
sem vontade,
uma vasta colónia de
formigas...
(As minhas pobres,
tímidas amigas!)
Pouco depois, em
casa,
a testa em fogo, o
olhar em brasa,
gritei num desafio
à Terra, ao Céu, ao
Mar, ao Rio:
« - Ó mãe, eu já sei
tudo!»
No seu olhar
tranquilo, de veludo,
no seu olhar
profundo,
que era todo o meu
mundo,
passou uma ironia tão
velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje
murmuro, cada dia:
« - Ó mãe, eu não sei
nada!»
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