Exercício da nossa aluna Isabella Mangani sobre a leitura de um excerto do "Livro do Desassossego": "Conselhos às mal-casadas"
Eis-me, eu sou para ti. Tu que nem tens consciência da minha existência. Como poderias? A minha corporeidade é alheia a mim mesma, ando a viver a minha vida num corpo que meu não é. Tu, minha alma que só te revelas quando estás sozinha e que nenhum espelho – por mágico que seja – é capaz de refletir. O que é que eu vejo, aí? Uma cara de jovem virtuosa, cabelo apanhado e uma certa rigidez de esqueleto que me permitem ser admirada quando ando na rua. Lá estão, os vizinhos, as bisbilhoteiras que tentam dissimular mas falam de mim, pensam em mim... “Olha lá, parece uma bailarina clássica, o chão nem dá pelos seus passos, de tanta delicadeza e suavidade”. Leio os seus pensamentos como os balões de uma história aos quadrinhos e reconheço muito bem aquelas olhadas: eu sou mestra, na arte da dissimulação. E perscruto-os, e dissimulo. O meu apetite, a minha fome de nudez, cores vivas e gestos toscos. Porque ser manifesto é uma grosseria.
Hoje a vítima do meu quotidiano, subtil crime de libertação vai ser... vai ser... a regateira ou o jovem advogado do terceiro andar? Ou até o Nuno, meu eterno amigo? Ainda hei-de pensar.
Às vezes, enquanto descasco batatas na cozinha, ouço rádio ou me visto para ir a um serão de beneficência, fantasio. A sensação de força e poder que me dá o saber que o meu espírito está livre de ir à rédea solta por quanto o meu corpo esteja enjaulado, ou eu o sinta tal, é comparável somente à emoção que me floresce no peito quando vejo as minhas fantasias assumir uma forma concreta.
Escolhi. O primeiro pensamento é sempre o certo. Pouco importa a sua aparência, nem sequer me quero lembrar dos olhos dela. O que me interessa é o contacto. Ou melhor ainda, o que acontece dentro de mim, o embaraço de fios que me entrelaça o estômago quando sei que tudo está pronto e o sonho que sonhei se irá tornar realidade. No instante depois, é já tudo inútil. O truque está em arquitetar logo outro crime. Da janela que dá para a Rua Grande, vejo-a aproximar-se do meu prédio. Como cada dia, o Senhor Pinheiro da Silva chamou-a para entregar alguns víveres para o seu apartamento. Depressa, hei-de sair agora. Enquanto no espelho arranjo uma madeixa, vejo outros olhos espreitar furtivamente para fora dos meus, a luz que sempre me ilumina antes de um dos meus crimes de sensualidade. Precipito-me pelas escadas abaixo, atenta em afrouxar o passo um andar antes de encontrá-la. Um degrau para baixo eu, forçadamente lenta para curtir melhor o instante a vir; um degrau para acima ela, passos pesados pelos andares saídos até cá, maravilhosamente ruidosos, toscos e suados. Tudo acontece nos segundos em que partilhamos o mesmo degrau: a minha espinha dorsal relaxa-se um bocado, só um bocadinho, uma alça desliza para baixo. Nossos ombros tocam de leve. Último detalhe: em continuar a minha descida, viro ligeiramente a cara e olho para acima. Ali estão, os seus olhos, procurando os meus. Um instante que já passou, tal como eu queria. Não se deter, este é o segredo.
E amanhã? Qual vai ser a vítima do meu crime de libertação? Deixa-me pensar...
ISABELLA MANGANI
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