lunedì 24 ottobre 2011

Maria Serena Felici: reflexão sobre o "Livro do Desassossego"


Exercício da nossa aluna Maria Serena Felici sobre a leitura de um excerto do "Livro do Desassossego":


A alma humana é vítima tão inevitável da dor...

No trecho do Livro do Desasossego que lemos a semana passada, o semi-heterónimo Bernardo Soares reflete sobre quanto é frágil o ser humano frente à dor. Pode-se dizer que este assunto é constantemente presente na obra de Fernando Pessoa, mas aqui é afrontado directamente, com paixão, parecendo quase uma resposta a uma pergunta que deve tê-lo acompanhado durante toda a vida: porque sofremos tanto?
Gosto de imaginar, sabendo que o Livro do Desasossego se compõe de várias anotações e reflexões, que elas foram escritas em momentos em que a dilaceração interior e a amargura eram demasiado fortes para não serem exprimidas, e que Pessoa, por estar tão só, via na escritura a sua única verdadeira amiga.
Chegámos a outro leitmoitv da literatura dele: a solidão. Mesmo sob nomes e caracteres diferentes, o ser humano que nos apresenta Fernando Pessoa é representado sempre irremediavelmente só no meio dum mundo traiçoeiro; por isso a resposta à pergunta antes citada é que o homem sofre simplesmente por uma ordem natural superior, por um elo inquebrantável entre o ser humano e a dor que faz com que até as pessoas, que teriam as capacidades mentais para enfrentar friamente as situações difíceis as percam e cedam ao sentimento.
O escritor pergunta-se por que motivo mesmo quem conhece muito bem a realidade pode perder completamente o controlo ao encontrar-se de repente diante dos seus lados mais dolorosos: dá o exemplo do homem que conhece a volubilidade da mulher mas fica angustiado quando descobre a traição, e o de quem sofre com a falta de consideração dos outros em relação aos seus escritos, ainda que seja consciente da vacuidade que separa os indivíduos, e que é a causa da impossibilidade deles se compreenderem perfeitamente.
Quem faz isto não é mentiroso: na hora em que fala acredita no que diz, mas encarar a realidade é outra coisa.
O que eu penso é: quantas vezes deve Fernando Pessoa ter constatado a enorme diferença entre o mundo com que ele sonhava, o mundo dos seus heterónimos, o mundo dos amigos que precisava imaginar porque não os tinha na verdade, e o verdadeiro, o que não se interessava com ele, para o qual ele não passava dum número, dum trabalhador qualquer? Um mundo incapaz de reconhecer uma personalidade cheia de sentimento, tumultuosa, um fogo escondido atrás de uma aparência anónima. Apesar de ter certamente reparado nisso inumeráveis vezes desde o seu nascimento, eu imagino Pessoa a sofrer cada vez mais ao receber desilusões da vida: a sua morte também pode ser vista neste sentido, pois o alcoolismo é uma forma de suicídio progressivo.
Na filosofia de Fernando Pessoa há um destino comum entre os seres humanos e a dor, e a vida é formada por esta união de sofrimento: “É isto que se chama a Vida” quer dizer que a verdadeira ciência das coisas da vida não pode existir sem a dor, e a nossa surpresa diante dos acontecimentos tristes é a prova disto: esta frase não é, como poderia parecer, uma simples afirmação de resignação, de quem quer fechar o assunto atribuindo as causas do sofrimento das pessoas a uma dimensão superior e inatingível; pelo contrário, é uma profunda reflexão sobre a natureza humana, que tem como consequência o descobrimento da liberdade de que goza quem vive com “a naturalidade das emoções espontâneas”: pois todos os conhecimentos, até os mais tristes, são liberdade.




MARIA SERENA FELICI

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