lunedì 16 gennaio 2017

"Este livro é uma visita ao Convento do Carmo que já não existe"



Fundado por um herói medieval, acarinhado pela corte, foi perdendo importância depois do terramoto que quase o destruiu, chegando até a servir de cavalariça e palheiro. Como seriam por dentro a Igreja e o Convento do Carmo antes de 1755? Um novo livro procura reconstituí-los.
Lucinda Canelas
16 de Janeiro de 2017



É a ruína mais cenográfica de Lisboa, postal da cidade, palco de acontecimentos decisivos da história recente e, ao mesmo tempo, quase um segredo. O Convento de Santa Maria do Carmo, construído na colina frente ao Castelo de São Jorge e casa ligada a Nuno Álvares Pereira, herói do Portugal medieval, tem novo livro.


Célia Nunes Pereira, conservadora do Museu Arqueológico do Carmo, ali instalado desde 1864, andou pelas bibliotecas e arquivos de várias entidades à procura de documentos que lhe permitissem fazer a reconstituição arquitectónica e artística deste monumento nacional, desde a sua fundação, em 1389, até ao violentíssimo terramoto de 1755, que o destruiu quase por completo.
Desse trabalho de investigação, que deu origem a uma tese de mestrado e à recente publicação de A Igreja e o Convento de Santa Maria do Carmo de Lisboa (ed. Associação dos Arqueólogos Portugueses), resulta uma espécie de percurso virtual que exige do leitor – e do visitante, já que o ideal é combinar livro e monumento – algum talento para recriar.
É preciso, desde logo, imaginar um tecto a cobrir as naves da igreja e altares em talha dourada nas 25 capelas carregadas de pintura e ourivesaria que o convento teve entre os séculos XV e XVIII; é preciso imaginar as cerimónias religiosas de uma comunidade carmelita que se habituou a contar com os favores da coroa e da nobreza, mas que foi perdendo frades e poder. “Depois do terramoto, a comunidade do Carmo decaiu, como todas as outras comunidades religiosas, porque decaiu também a crença em Deus”, diz ao PÚBLICO a autora.
Se quisermos levar mais longe o exercício que constrói esta ficção informada e trazê-lo até aos séculos XIX e XX, teremos também de ali instalar os cavalos que pertenciam à Guarda Real da Polícia, a força militar que viria a dar origem à actual Guarda Nacional Republicana. E isto sem esquecer que, boa parte do espaço agora ocupado pelo museu, incluindo a capela-mor, servia de palheiro e de estrumeira.
A construção do convento, que tinha em volta campos de cultivo que abarcavam o que é hoje o Rossio, teve muitos percalços. Lembra Célia Nunes Pereira que o edifício ruiu duas vezes quando estava a ser feito e que foi preciso que Nuno Álvares Pereira (1360-1431) contratasse dois mestres de obras judeus – “os melhores engenheiros na época”, brinca a conservadora – para que se descobrisse uma forma de lidar com a instabilidade do terreno na colina, que insistia em ceder sob o peso da pedra. “Sobre o interior da igreja medieval sabemos muito pouco – desconhece-se o programa iconográfico de Nuno Álvares –. mas no século XVIII já não é assim.”
Sabe-se, por exemplo, que a igreja sofreu profundas alterações na decoração entre 1523 e 1537 e também depois da restauração da independência (1640), época em que os conventos carmelitas foram ampliados. No século XVIII seria ainda dedicada a Nossa Senhora do Carmo e há até um inventário das jóias e vestidos que pertencia à imagem da santa que, naturalmente, ocupava lugar de destaque na capela-mor.
As principais fontes, a que Célia Nunes Pereira chama “preciosas memórias descritivas”, usadas no livro são um manuscrito de 1721, de Frei Manuel de Sá, e os dois volumes de crónicas deixados por Frei José Pereira de Santa Ana, de 1745, ambos membros daquela congregação (a primeira destas fontes, aliás, é integralmente reproduzida em fac-símile nesta edição dividida em dois volumes, com cuidada composição gráfica de Ricardo Castro).

As crónicas carmelitas estavam publicadas, mas o manuscrito iluminado de Frei Manuel de Sá, que a autora levou uma semana a transcrever, permaneceu fechado num cofre (onde ainda está) durante anos sem que ninguém olhasse para ele. As circunstâncias que levaram o Estado a comprá-lo há dez anos num leilão são descritas pelo actual presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), José Morais Arnaud, no prefácio de A Igreja e o Convento de Santa Maria do Carmo de Lisboa. Este documento valiosíssimo para reconstituir a história do convento faz hoje parte da colecção da Biblioteca Nacional de Portugal.
“Nele Frei Manuel de Sá descreve detalhadamente cada capela e chega a desenhar pormenores e até um altar inteiro. Foi muito a partir daí que fui procurando pistas e me apercebi de que muitas das peças tinham ido parar a museus.”
Os escritos de Manuel de Sá tornaram mais acessível a tarefa, “sempre por terminar”, desta conservadora formada em História de Arte que procurou identificar os artistas que ao longo de séculos foram chamados a contribuir para o enriquecimento deste templo: “Estão entre os melhores que havia no país, no maneirismo e no barroco. Sendo uma das igrejas mais acarinhadas de Lisboa, por causa de Nuno Álvares Pereira, tinha muitos benfeitores e eles competiam entre si pelos melhores pintores quando se tratava de decorar a capela de que eram mecenas.” Bento Coelho da Silveira, Simão Rodrigues, Domingos Vieira Serrão, Marcos da Cruz ou André Reinoso são alguns destes pintores.
De acordo com um outro manuscrito impresso do arquivo da Ordem Terceira, ali bem perto, no Carmo chegou até a haver uma escultura de Miguel Ângelo, um Cristo crucificado. “Não sabemos se é verdade ou não, mas há um registo.”

O gosto pela ruína

Em 1755, a irmandade carmelita tinha 105 frades, 14 morreram no terramoto, escreve a conservadora, precisando que, naquele trágico dia de Novembro, a igreja estava cheia. “Morreu muita gente aqui”, diz, enquanto caminha pela nave central, ladeada por uma série de “capelas cegas”, todas rebocadas em restauros e trabalhos de limpeza já do século XX.
Depois do sismo, ficaram de pé apenas a zona cabeceira, embora o tecto da capela-mor tenha ruído, a fachada e parte das paredes norte e sul. “A destruição foi enorme porque, a seguir ao terramoto propiamente dito, houve, como aconteceu em tantos outros sítios espalhados pela cidade, um incêndio que consumiu praticamente todo o recheio.” A igreja estava, é claro, cheia de velas.
“Os frades começaram logo a reconstruir – os arcos, a capela-mor… Uma igreja sem capela-mor é como um altar sem santos e esta tinha perdido o tecto.”
Os trabalhos arrancaram em 1756, mas a falta de dinheiro deixa-os por acabar, vindo a ser abandonados em definitivo depois de 1834, ano da extinção das ordens religiosas em Portugal. Isto porque, à reacção contra a Igreja, veio juntar-se o gosto romântico pela ruína e pelos grandes monumentos medievais que marca o século XIX. Foi nessa altura, aliás, que chegou a ser desenhado um plano de reconstrução que previa a instalação de uma cobertura de ferro e vidro. “É preciso ver que o entulho chegou a ter dois metros de altura”, diz a conservadora, apontando para a base das colunas da igreja: “Chegava até aqui”.
O museu do Carmo, o primeiro de arte e arqueologia do país, foi criado em 1864 por Possidónia da Silva, fundador da AAP, instituição a quem ainda hoje está confiado. Arquitecto da família real portuguesa, este primeiro presidente da associação (na altura chamava-se Real Associação dos Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses) viajava intensamente pelo país e usou toda a sua influência para proteger o património nacional, que sentia estar fortemente ameaçado, primeiro pela extinção das ordens religiosas e, depois, pelas invasões francesas e pelas lutas liberais que se seguiram.
Hoje o Carmo tem na sua colecção muitas peças por ele reunidas e outras que foi recebendo ao longo de décadas. Quem entra e percorre as salas encontra túmulos – o de Maria Ana da Áustria (século XVIII) impressiona pelo tamanho, mas é o de D. Fernando I (século XIV) que fascina (ver caixa) –, colecções de arqueologia que começam na Pré-História, múmias peruanas do século XVI e arte contemporânea. “As coisas eram trazidas para aqui, ao passo que o que aqui havia foi desaparecendo ou está espalhado por muitos museus e igrejas”, lamenta a conservadora. A estátua de Neptuno que está hoje no Largo D. Estefânia, em Lisboa, esteve no Carmo, exemplifica; a janela manuelina que ainda faz parte da colecção veio dos Jerónimos, mas ninguém sabe exactamente para onde foi feita.
“O que fiz foi pegar neste esqueleto de pedra e tentar ouvir o que me dizia, procurar saber o que é que eu tenho aqui que seja original ou anterior a 1755”, explica Célia Nunes Pereira.
Cruzando as fontes documentais disponíveis, e contando com o acompanhamento do historiador de arte Vítor Serrão, seu orientador, a conservadora do Carmo foi identificando peças e documentos que pertenceram àquela igreja e àquele convento carmelita em colecções públicas (nestas muitas já se sabia de onde vinham) e privadas. A antiga capela de Santa Ana e São Joaquim, por exemplo, está no velho Convento de Colares, hoje uma quinta particular, casa a que o Carmo a doou no século XVIII, com talha, pintura e imagens; o arquivo carmelita está agora em boa parte na Igreja do Loreto, no Largo do Chiado; uma imagem de Nossa Senhora da Piedade (século XIV-XV) e outra de Santo Elias (século XVIII) estão na Capela da Ordem Terceira do Carmo, gerida por uma comunidade de leigos ali bem perto; as pinturas Santa Maria Madalena de Pazzi Coroada de Espinhos (XVII), de Bento Coelho da Silveira, Santa Catarina e os Doutores (XVII), de André Reinoso, e Nossa Senhora do Rosário, de Vieira Lusitano, integram  a colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa; duas jóias do século XVIII ligadas à imagem da Senhora do Carmo da capela-mor estão hoje confiadas ao Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto.
“Muitas das peças estão aqui à volta, pelo Chiado. Há outra imagem barroca da Nossa Senhora da Piedade na Igreja do Sacramento… O que me supreendeu muito ao longo desta investigação não foi encontrar esta ou aquela peça que não sabíamos onde estava, mas sentir quer todos os que por aqui passavam antes do terramoto ficavam maravilhados com o que viam e falavam disso, escreviam sobre esse maravilhamento.”
Quem lê o que escreveu, por exemplo, Siro Ulperni, um forasteiro do século XVII que passa por Lisboa e descreve a festa de canonização de Madalena de Pazzi, quase acredita, defende a autora, “que quem vê a igreja se torna automaticamente devoto pela beleza disto tudo”.
Ao longo de quatro anos de trabalho de investigação, Célia Nunes Pereira localizou 96 peças do espólio do Carmo (pintura, escultura e ourivesaria) e neste livro publica cerca de 30, muitas ao longo das 40 páginas que dedica à reconstituição das desaparecidas capelas da igreja, detalhando, tanto quanto possível, o recheio de cada uma.
Numa segunda fase, a conservadora gostaria de vir a estudar cada uma das peças identificadas, escrevendo sobre o contexto da sua criação. “Sei que, se continuar a investigar, a procurar nos arquivos da Ordem Terceira e noutros, vou encontrar mais. Gostava mesmo muito de saber como era o templo medieval por dentro, que casa é que Nuno Álvares Pereira deixou.”



Um restauro que exige “coragem”


Lucinda Canelas
16 de Janeiro de 2017

Com quase 240 mil visitantes em 2016, o Museu Arqueológico do Carmo tem uma colecção altamente eclética que nos faz lembrar os museus de outros tempos. Nela a vivência do próprio edifício religioso mistura-se com a arqueologia da Pré-História ou da época romana, com painéis de azulejos do século XVIII e arte tumulária do século XIV e seguintes.  
Se não valesse desde logo a pena conhecê-lo por toda a sua riqueza histórica e patrimonial, o Convento do Carmo mereceria uma visita pelo simples facto de a sua colecção incluir o túmulo de D. Fernando I (1345-1383), o último rei da primeira dinastia portuguesa. Este monumento funerário, estudado pela historiadora Carla Verela Fernandes, autora do livro A Imagem de um Rei, parece estar sempre a interpelar quem o olha. Profusamente decorado, mantém um certo mistério, mesmo que, passados 600 anos e muitos usos indevidos, o seu estado de conservação deixe muito a desejar.
O túmulo chegou ao Carmo vindo do Convento de São Francisco, em Santarém, durante anos entregue aos militares.
Tem uma série de bustos de figuras religiosas e laicas, seres híbridos, fantásticos, de pescoços entrelaçados, anjos segurando escudos, leões alados, criaturas antropomórficas, cenas da vida e dos milagres de São Francisco de Assis e até um alquimista (ou médico?) a trabalhar.
Célia Nunes Pereira admite que o museu gostaria de o ver restaurado, mas que não tem sido fácil encontrar quem o faça: “Está em muito mau estado e é uma intervenção de altíssima responsabilidade. É preciso muita coragem para o restaurar”, diz, explicando que é bem provável que parte dos danos causados à pedra tenham sido feitos quando foi usado para bebedouro de cavalos (os militares faziam ainda do tampo desta arca tumular suporte para as selas): “A água que se dá aos cavalos leva sal e o sal corrói a pedra. É uma pena, mas não é um uso exclusivo deste túmulo. Muitos outros foram usados para o mesmo fim ou, no caso do Sarcófago das Musas [túmulo romano do século III-IV, também no museu], para fazer azeite e destilar aguardente.”
Neste momento, a direcção do museu tem previsto uma série de pequenas intervenções de restauro e há uma equipa da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto a analisar a estabilidade dos arcos da igreja, algo fundamental num edifício que esteve fechado entre 1996 e 2000 por causa das obras do metropolitano. “Ainda não perdemos a esperança de ver o túmulo de D. Fernando como merece.”

Nessun commento: