— Extraordinário, aquele Gonçalo!
O Videirinha não findara o seu enlevado sorriso:
— Tem muito talento... Ah! o Sr. Doutor tem muito
talento.
— Tem muita raça! - exclamou o Titó, levantando a
cabeça. - E é o que o salva dos defeitos... Eu sou amigo de Gonçalo, e dos
firmes. Mas não o escondo, nem a ele... Sobretudo a ele. Muito leviano, muito
incoerente... Mas tem a raça que o salva.
— E a bondade, Sr. Antônio Vilalobos! - atalhou
docemente Padre Soeiro. - A bondade, sobretudo como a do Sr. Gonçalo, também
salva... Olhe, às vezes há um homem muito sério, muito puro, muito austero, um
Catão que nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguém gosta dele,
nem o procura. Por quê? Porque nunca deu, nunca perdoou, nunca acarinhou, nunca
serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem defeitos, que tem culpas,
que esqueceu mesmo o dever, que ofendeu mesmo a lei... Mas quê? É amorável, generoso,
dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo
carinhoso... E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me perdoe, se Deus
também o não prefere...
A curta mão que acenara para o céu recaiu sobre o
cabo de osso do guarda-sol. Depois, e corado com a temeridade de pensamento tão
espiritual, acudiu cautelosamente:
— Que esta não é propriamente doutrina da
Igreja!... Mas anda nas almas;
anda já em muitas almas.
Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de
pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como
sempre que estabelecia um resumo:
— Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo
Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?
— Quem?
— Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança.
Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que
notou o Sr. Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo,
e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade,
o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra,
uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre
a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à
realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A
esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará
todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma
simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de
melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si
mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói,
que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha
Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo
completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
— Quem?...
— Portugal.
Eça
de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires,
Capítulo XII
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