Entrevista ao Monsenhor Agostinho Borges, "Bento XVI não é sombrio nem taciturno" publicada por Rosa Ramos, a 29 de Abril de 2010 em
Vive em Roma há 15 anos e tem privado com o Papa. O reitor do Instituto Português de Santo António garante que Bento XVI é "divertido"
Quando era seminarista quis fazer um interrail. Meteu-se num comboio até à Alemanha e foi "aprender alemão". Anos mais tarde, uma semana depois de ser ordenado padre, e "ainda mal sabia dizer a missa em português", decidiu mudar-se para Paris. Durante 10 anos, trabalhou com a comunidade portuguesa no bairro 16. Aos 52 anos, o reitor do Instituto Português de Santo António em Roma ainda não perdeu a obstinação. Quis comprar um órgão novo para a igreja e não esteve com meias medidas: escreveu a todas as Câmaras portuguesas para angariar fundos. Depois, apresentou os autarcas que colaboraram a Bento XVI. Em Roma há 15 anos, Monsenhor Agostinho Borges quer fazer do Instituto "um espaço de acolhimento aos peregrinos cada vez mais virado para a arte".
Bento XVI está quase a chegar a Portugal. Relaciona-se bem ele? Lembra-se de como é que se conheceram?
Conhecemo-nos em 2001, quando ainda era cardeal, pouco tempo antes de ele ir à Universidade Católica do Porto, para dar uma conferência sobre as raízes cristãs na construção da Europa. O actual bispo de Leiria-Fátima era director da faculdade de Teologia e pediu-me para fazer o intermediário. Acompanhei-o a Portugal. Levei-o a Guimarães e a Braga, onde visitámos Bom Jesus e o Sameiro.
Ele nunca tinha estado em Portugal?
Não e gostou muito, sobretudo de conhecer a história do início da nação. Esteve sempre muito atento em todos os momentos. E levava a lição muito bem estudada, informou-se antes da viagem. Foi muita gente ouvi-lo ao Porto, o que foi reconfortante. D. Armindo, o bispo da altura, recebeu-o muito bem, apesar de ser muito sóbrio e simples. Ele não bebe, por exemplo, bebidas alcoólicas, a não ser de vez em quando um vinho do Porto. Saboreou o vinho, via-se que sabia apreciar. E aproveitou para visitar as caves do vinho do Porto.
Desde então mantiveram contacto?
Sim. Pouco tempo depois, aceitou almoçar em minha casa com o cardeal de Colónia. Sempre com uma postura de grande simplicidade. Há até um episódio que recordo muitas vezes. Para se sair da minha garagem é preciso fazer muitas manobras - mesmo à romano. Ratzinger ficou muito admirado com a minha agilidade e, no final, pôs o secretário dele e uma religiosa que estava connosco a aplaudir-me fervorosamente. É um homem divertido. E muito simples, muito humano. Memoriza muito as pessoas. Sempre que nos encontrávamos, perguntava-me: "Como está o seu amigo bispo?". Referia-se ao bispo de Leiria-Fátima, que conheceu em Portugal. Quando contava a D. António, ele até achava que eu estava a brincar. Mas o que é certo é que depois de ter cá estado, no Porto, Ratzinger mandou-lhe um cartão de boas festas e tudo. Nunca se esquece de ninguém. É impressionante.
Mas diz-se que o Papa é um académico nato com pouco jeito para as pessoas...
Não. Nem é sombrio ou taciturno. Viajei pela Alemanha, desde muito cedo, e habituei-me ao jeito de ser germânico. O alemão é uma pessoa distante, no início. Parecem calculistas, demoram o seu tempo a ganhar confiança. Mas depois tornam-se afectuosos e fiéis. E ele é exactamente assim. Em 2008 fui a uma audiência de quarta-feira com um grupo de presidentes da Câmara do Norte que me ajudaram a construir o novo órgão da Igreja. Quando lhos apresentei, expliquei-lhe porque estavam ali e ele agradeceu-lhes, de forma muitíssimo efusiva e afectuosa. Ele não é distante.
E também conheceu João Paulo II...
Sim, mas são muito diferentes. João Paulo II era o Papa das multidões. Bento XVI é o Papa que se fixa em cada um, individualmente. Aliás, isso nota-se nas fotografias de um e outro. Bento XVI aparece sempre atento a quem cumprimenta. João Paulo II aparece a cumprimentar, mas já a olhar ao longe, a preparar-se para quem vem a seguir. O antigo Papa estava habituado a lidar com multidões. São estilos de liderança diferentes.
É reitor do Instituto de Santo António dos Portugueses já há alguns anos. Promovem um concerto de órgão muito famoso no Vaticano todos os domingos. Mas fazem mais do que isso, ou não?
É indiscutível que temos uma actividade concertista muito forte. O nosso órgão, inaugurado em Dezembro de 2008, é considerado único em Roma. O projecto foi encomendado a um grande organista francês que já tem 80 anos, Jean Guillou. Mas a actividade do Instituto não se resume a isso. Há ciclos contínuos de conferências, uma galeria de exposições - considerada uma das mais bonitas de Roma e que resultou da reconstrução das antigas caves dos peregrinos. Além disso, temos um arquivo histórico e uma biblioteca com mais de 30 mil volumes. Depois, há a vocação natural do Instituto, que é servir de espaço de acolhimento a investigadores, académicos, professores e doutorandos de todas as áreas e que nos chegam de todos os pontos de Portugal.
Quanto é que pagaram pelo órgão?
Custou 390 mil euros, que foram pagos pelos presidentes de Câmaras da região do alto Tâmega e também com a ajuda da Câmara de Felgueiras.
Há uma presença forte de Portugal em Roma?
Acredito que sim. Quis investir no órgão precisamente para chamar público e ganhar publicidade.
Que ideia há dos portugueses em Roma?
Os italianos têm uma expressão, "fare il portoghese" (fazer-se passar por português). Tem a ver com razões históricas. D. João V enviou ao papa Clemente XI uma embaixada durante umas festividades e o Santo Padre, maravilhado com o fausto do grupo, determinou que os cidadãos portugueses fossem dispensados de pagar os ingressos nos espectáculos. Mas os romanos, que eram espertos, começaram a fazer-se passar por portugueses. Por isso, ainda hoje, quando se entra num autocarro sem pagar, ou não se paga alguma coisa, os italianos dizem isso. Quem não conhece a história até pode pensar que os portugueses são vistos como caloteiros, mas a história reverte a nosso favor. Em Itália gosta-se muito de Portugal e dos portugueses.
Portugal continua a ser um dos países com maior tradição religiosa. Continua a sentir isso?
Sim, apesar de viver fora de Portugal desde 1984. Estive dez anos em Paris e já estou há 15 anos aqui. Pelo meio só vivi um ano em Portugal.
Mas há coisas que estão a mudar. A aprovação dos casamentos homossexuais, a despenalização do aborto são sinais preocupantes para a Igreja?
A história o dirá. Não seremos nós a ler e a fazer a história. Serão outros, quando olharem para a nossa época. Parece-me que temos pressa, medo de perder o comboio. Nenhuma sociedade, como dizia Santo Agostinho, encarna totalmente a cidade de Deus. E a Igreja também não é perfeita. Mas, com os seus altos e baixos, deve continuar a indicar caminhos, consciente de que também é chamada à conversão.
Já há correntes dentro da própria Igreja que defendem mudanças radicais, como o fim do celibato...
Esse é um problema que não me preocupa, porque quando quis ser padre sabia o que tinha pela frente. A minha vida está orientada pelo celibato, foi essa a minha escolha. Que a igreja noutros momentos da história possa optar por outros estilos de ministério, a mim não me assusta nada. Não me preocupa. Mas mantendo os dois caminhos, a possibilidade de escolha.
Poderá estar próximo, esse momento?
Não me parece que seja agora. A Igreja - entenda-se comunidade por inteiro - está, neste momento, como acontece em qualquer outra instituição de vez em quando, a ser chamada a viver um momento de purificação e a testemunhar a fé. Hoje, com a imigração de gentes de outros mundos e religiões - como o mundo muçulmano - há temas mais urgentes. Sempre me interroguei porque é que jovens nascidos na Europa - e vi muito isso em Paris -, filhos de segunda ou terceira geração do mundo árabe, com cursos universitários, se tornam fundamentalistas. É sinal de que a cultura europeia, massacrada pelo secularismo, não consegue dar uma resposta. Interrogo-me: será que nós, igreja ocidental, europeia, estamos à altura de testemunhar a nossa fé e aquilo em que acreditamos? Estará a Igreja à altura de responder aos desafios do nosso tempo? Teremos que estar. Com a razão. Apostando no diálogo, porque não se pode fazer nada sem diálogo. O diálogo é o exercício concreto da aceitação da pessoa que temos à nossa frente. Enquanto cristão, o principal é a aceitação do outro enquanto imagem de Cristo, independentemente da sua crença ou religião.
E como avalia o papel da Conferência Episcopal Portuguesa na gestão destas mudanças na sociedade portuguesa?
A Igreja não pode controlar poderes económicos ou políticos. E nem sempre a sua voz se faz ouvir. Mas creio que se poderá investir mais em meios audiovisuais - apesar de caros. A Igreja - e não são só os padres e os bispos, mas todos os baptizados - precisa de gente profissionalizada, capaz de fazer passar a mensagem de Cristo. Sei que há gente a trabalhar nesse sentido e que tem abdicado do seu tempo, mas é preciso mais. Hoje, as pessoas não têm tempo para ler grandes discursos. É preciso alguém que pegue no grande discurso e o saiba colocar, sem o desvirtuar, em títulos e subtítulos. São desafios que já vêm de longe, mas hoje colocam-se mais porque a sociedade também está diferente.
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