Duas vozes portuguesas em memória de Pasolini
EUGÉNIO DE ANDRADE
e
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
Pier Paolo Pasolini (Bolonha, 5 de março de 1922 — Óstia, 2 de novembro de 1975).
REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI
Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era Novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de Abril podem matá-lo – amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece o brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de assinar.
Seia qual for a razão, e muitas há,
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.
Novembro, 1975
in Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
ÓSTIA
Um desses atrasos no aeroporto de Fiumicino
e eis-nos em salto desprovido por estas ruas
além do parque arqueológico
a cidade assemelha-se a um acampamento
desolado
varandas cheias de caixotes e detritos
(devem ser exíguas as casas económicas)
muros com imprecações aos de Roma
e a débil força messiânica entregue
aos ídolos do futebol
Sem darmos conta já estávamos encalhados
numa qualquer estrada secundária
junto a um matagal circundado de rede
onde um letreiro quase ao acaso
diz ter morrido
Pier Paolo Pasolini
in A Estrada Branca
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