http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/morreu-paulo-cunha-e-silva-1714048
Cláudia Lima Carvalho , Isabel Salema , Patrícia Carvalho , Mário Lopes e Lucinda Canelas
O vereador da Cultura na Câmara do Porto, Paulo Cunha e Silva, morreu na
madrugada de terça-feira para quarta-feira na sua casa em Matosinhos vítima de
um enfarte agudo do miocárdio, apurou o PÚBLICO junto de amigos. Tinha 53 anos.
Cunha e Silva sentiu-se mal depois do jantar, foi assistido pelos amigos e pelo
INEM mas viria a falecer pouco depois. O óbito foi declarado às 00h15. Num
curto comunicado emitido esta manhã, o presidente da Câmara do Porto, Rui
Moreira, anuncia que foram decretados três dias de luto na cidade.
O corpo ficará em câmara ardente, a partir das 17h desta quarta-feira, no
palco do auditório Manoel de Oliveira, no Teatro Municipal Rivoli. Em
comunicado, a Câmara do Porto explica que o teatro estará aberto durante toda a
noite "a todos os queiram prestar homenagem" ao vereador. Na
quinta-feira, pelas 14h, o cortejo fúnebre abandonará o teatro, seguindo até à
Igreja da Lapa, onde se realiza a missa, pelas 15h. O corpo será cremado.
Nos dois anos que esteve à frente da vereação - foi convidado para o cargo
pelo independente Rui Moreira - o Porto conheceu um renascimento cultural: quer
com os muitos projectos que lançou, quer num intenso trabalho em rede com
múltiplos agentes e espaços culturais da cidade, dando-lhes visibilidade. Numa
entrevista ao PÚBLICO logo depois de ter tomado posse, o vereador disse que o
Porto podia “ser um laboratório político-cultural para o país”. Um dos seus
slogans era a vontade de transformar o Porto numa “cidade líquida”, movente,
“onde tudo pode acontecer em todo o lado”. Cunha e Silva conseguiu também
devolver à cidade o seu teatro municipal, o Rivoli.
“O Paulo era uma pessoa que tinha uma visão completa da Cultura. Marcou
profundamente a dinâmica cultural do Porto, onde havia quase um esquecimento”,
diz ao PÚBLICO Luís Braga da Cruz, presidente da Fundação de Serralves,
visivelmente emocionado e “chocado”. “O seu desaparecimento deixa um profundo
desgosto”, acrescenta, contando que ainda nesta terça-feira esteve com o
vereador em Serralves para o início da grande retrospectiva da obra cinematográfica
de Manoel de Oliveira.
Braga da Cruz conta que no seu discurso de inauguração da retrospectiva,
organizada em conjunto por Serralves e a Câmara do Porto, Paulo Cunha e Silva
disse que não se podiam dar mais nomes de ruas ao cineasta que morreu em Abril
deste ano como forma de homenagem mas sim “mostrar a sua obra para que a sua
memória perdure”. “E nós agora temos de fazer a mesma coisa com a memória do
Paulo, sem deixar esmorecer, sempre com mais energia”, defende o presidente de
Serralves, para quem Paulo Cunha e Silva foi “um interlocutor permanente”. “Não
havia nada que fizéssemos em Serralves que ele não aparecesse, estava sempre
presente, sempre atento, com sentido de oportunidade”, continua, com a certeza
de que Paulo Cunha e Silva “enriqueceu o Porto”.
Tiago Guedes, director do Teatro Municipal do Porto, lembra a forma intensa
como Paulo Cunha e Silva trabalhava. “Tínhamos uma relação de trabalho que
extravasava uma relação normal de trabalho. Era algo muito intenso, sempre com
ideias em cima da mesa”, conta o coreógrafo e bailarino escolhido para
encabeçar uma das grandes apostas da Câmara do Porto, o Rivoli. “O Paulo
encarava a Cultura de forma muito transversal. Os projectos artísticos eram
pensados sempre em relação com outras aéreas, outras estruturas, outras
pessoas, o que tornava o trabalho muito rico. Ele não via a Cultura como algo
fechado em si mesmo, pelo contrário. A Cultura para ele era aberta e
completamente transversal a todas as áreas do conhecimento e do pensamento”,
diz, recordando “a capacidade enorme” que o vereador tinha de contaminar todos
os que o rodeavam com “o entusiasmo que tinha pelo trabalho”. “O trabalho era a
vida dele.”
É por isso que Tiago Guedes garante que o trabalho que tem vindo a ser
desenvolvido no Rivoli continuará a ser feito. A programação não será alterada,
destacando a exibição de Aniki-Bóbó marcada para às 22h desta quarta-feira, no
âmbito da retrospectiva integral de Manoel de Oliveira. “Vai acontecer tudo
como ele queria”, diz.
António Jorge Pacheco, director artístico da Casa da Música, não tem
dúvidas de que o Porto, e o país, perderam uma referência importante. “Eu perdi
um amigo”, diz, sem conseguir acrescentar muito mais. “Tinha uma energia
criativa rara”, continua, contando que os dois ficaram amigos quando
trabalharam juntos na Porto 2001, onde Pacheco foi o responsável pelo sector da
música.
“Enquanto vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva em muito contribuiu para
a transformação da cidade, para que se respirasse um ar diferente. Ele fez
parte da transformação que se viveu Porto”, defende, falando do Porto de agora
como “uma cidade muito mais cosmopolita e em que de facto os valores da Cultura
foram realçados como não tinham sido antes”.
Licenciado em Medicina e doutor pela Universidade do Porto, Paulo Cunha e
Silva torna-se mais conhecido quando assume boa parte da programação da Porto
2001. A astrónoma Teresa Lago, que foi presidente da Porto 2001 e é hoje
secretária-geral da Sociedade Astronómica Internacional, diz que Paulo Cunha e
Silva foi uma das pessoas “essenciais” para a programação da Capital Europeia
da Cultura. “Ele era uma pessoa obviamente brilhante e excitante”, disse ao
PÚBLICO, na manhã desta quarta-feira, caracterizando o último vereador da
Cultura da Câmara do Porto como “uma espécie de vulcão em erupção constante de
ideias interessantíssimas”.
Teresa Lago revela que ficou “muitíssimo feliz” quando soube que Cunha e
Silva era o escolhido de Rui Moreira para assumir a pasta da Cultura, porque,
argumenta: “Criaram-se enormes expectativas de uma vida cultural numa cidade
que estava tão carente, depois da seca enorme que tivera”. Com a morte
prematura do vereador, a astrónoma não tem dúvidas que ele teve “pouco tempo
para concretizar “ o que queria. “Ele tinha muitas ideias, não teve tempo
suficiente”, diz.
Substituir Cunha e Silva será, para a ex-presidente da Porto 2001, uma
tarefa muito difícil. “Não vai ser fácil, com certeza. Ele era da área da
ciência, era médico, e tinha uma capacidade absolutamente extraordinária de
cruzar interesses. Era uma pessoa única, muito particular e de uma enorme actividade
intelectual”, disse.
José Barreiro, director do festival NOS Primavera Sound, recorda Paulo
Cunha e Silva como um homem que “tinha do Porto a ideia de uma cidade,
europeia, contemporânea, moderna”, destacando, do seu trabalho enquanto
vereador da Cultura, “a devolução do Rivoli à cidade”. Realçando a “admiração e
respeito” que “todos os agentes culturais tinham pelo seu trabalho”, lamenta a
sensação que fica, com a sua morte, de Cunha e Silva “não ter tido tempo de
fazer tudo aquilo de que a cidade precisava”: “Lançou sementes e o Porto poderá
colher mais tarde essa sementeira”.
José Barreiro acentua que Paulo Cunha e Silva demonstrou que, “mesmo sem
uma grande disponibilidade financeira para apoiar projectos culturais, devido
às limitações orçamentais, é possível, através da motivação dos agentes
culturais, fazer bastante com pouco”. Dá como exemplo da sua visão para a
cultura o Festival do Pensamento/Fórum do Futuro, que teve segunda edição no
início deste mês e que reunia, no Rivoli, em Serralves ou na Casa da Música, um
painel internacional de cineastas, arquitectos, filósofos ou romancistas para
debater de uma forma multidisciplinar os desafios que se colocam à sociedade
contemporânea. O tema da edição 2015 era “a felicidade”.
Antes de chegar à vereação da Cultura do Porto, Cunha e Silva foi
conselheiro cultural na Embaixada de Roma entre 2009 e 2012. Foi ainda director
do Instituto das Artes entre 2003 e 2005.
Em Outubro, foi condecorado pelo Governo francês com o título de Cavaleiro
da Ordem das Artes e Letras, pelo "seu serviço à Cultura".
Pensar e fazer o que se
pensa
No domínio do debate de ideias, foram muitas as áreas do pensamento
contemporâneo que interessaram a Cunha e Silva. Sempre disposto a cruzar as
ciências – física, matemática, medicina, bilogia - e as artes, este professor
da Universidade do Porto ancorava boa parte das suas reflexões no lugar que
cabia ao corpo no confronto com tudo o que o rodeava. Paulo Cunha e Silva era
professor associado de Pensamento Contemporâneo na Faculdade de Desporto.
Na sua tese de doutoramento, que haveria de ser publicada em livro, O Lugar
do Corpo: Elementos para uma Cartografia Fractal (edição Instituto Piaget,
2007), Paulo Cunha e Silva apresenta uma “original” teoria do corpo, “muito inovadora”,
que atravessaria boa parte da sua produção teórica e crítica, explica ao
PÚBLICO José Bragança de Miranda, ensaísta e investigador da Universidade Nova
que desenvolveu vários projectos com o programador da Porto 2001, que haveria
de se tornar seu amigo. “O que lhe interessava eram as capacidades de expressão
do corpo face à arte, à política, ao território. E, a partir deste interesse,
que ele explora com todos os seus conhecimentos da medicina, da biologia, da
astronomia e da matemática, ele cria uma nova teoria baseada no movimento,
aquilo a que ele chama o ‘corpo motor’”, explica este sociólogo com obra
publicada nos domínios da comunicação e da cultura. Um corpo “instável” que se
descobre na relação com o mundo, a política, a arte, a cidade.
A sua maneira de pensar, e de pensar o território, a cidade, assentava na
possibilidade de estabelecer redes, acrescenta o professor universitário,
lembrando que, quando apresentava mais um dos seus projectos de cruzamentos
interdisciplinares, Cunha e Silva dava muitas vezes a imagem do mapa do metro,
com todos as suas estações, nós, linhas e derivações: “A rede é a sua maneira
de pensar o mundo. E os mapas ajudam-no a criar várias cidades dentro da cidade
real que ele conhece bem.”
A Bragança de Miranda assustava-o, por vezes, o seu entusiasmo avassalador:
“O Paulo estava muito longe de ser um intelectual descarnado, etéreo. O Paulo
não era só o que pensava, era o que fazia. Sei agora que essa entrega tinha
riscos, tinha custos.”
Ao serviço da cultura
O vocalista dos GNR, Rui Reininho, conhecia há muito Paulo Cunha e Silva.
“Já antes do Porto 2001 nos tínhamos reunido para realizar algumas iniciativas
em conjunto”, recorda, antes de o descrever de forma curiosa. “Nestes tempos
que temos vivido, vejo-o quase como um agente ao serviço de Sua Majestade da
Cultura. Em vários filmes do 007, James Bond desaparecia numa queda inóspita ou
algo semelhante e depois reaparecia. Este é um dos poucos casos em que gostaria
que a reencarnação existisse.”
Abalado pela notícia – “é difícil acreditar que tenha morrido”, suspira -,
lembra em Paulo Cunha e Silva alguém que “fazia da cultura um grande prazer”.
Do seu trabalho recente na autarquia portuense, realça “as portas que abriu e
as pontes estabeleceu”, e faz uma analogia musical: “Creio que não havia uma
nota que o Paulo não conseguisse dar. Desde barítono a contralto, descobriu
todas as notas. Deixa uma série de iniciativas em andamento, portanto a sua voz
ainda ecoa.”
Na memória tem “a forma como passava dos assuntos ditos sérios para uma
cascata de humor e boa disposição”, e um entusiasmo abnegado pelo trabalho
cultural. “Não queria nem nome de rua, nem busto, a não ser que fosse um busto
desnudo”, remata com humor. Afirma depois, muito a sério: “Nestas ocasiões somos
sempre egoístas e falamos da falta que nos fazem aqueles que partiram, mas
neste momento, e não diria isto de muita gente, sinto que podia ter ido eu.
Fazia menos falta.”
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