De muita coisa se fazem os seus poemas – até de arroz de tomate. E "receitas para a crise”. E virtuosismo. Não tivesse ele hoje má reputação e má imprensa e poderíamos colocar Ana Luísa Amaral no grupo dos poetas demasiado sábios do seu ofício.
Entre as vozes poéticas que marcaram o final do nosso século
XX conta-se a de Ana Luísa Amaral cuja obra adquiriu entretanto peso e
consistência.
Revelada nos anos 90 com Minha Senhora de Quê, prosseguiu, com impressionante cadência editorial, com Coisas de Partir (1993), Epopeias (1994), E Muitos os Caminhos (1995) e Às Vezes o Paraíso (1998). Os livros que a seguir vieram, Imagens (2000), Imagias (2002), títulos desde logo reveladores do peso que as imagens têm na sua obra, A Arte de Ser Tigre (2003)
apresentavam uma poética já muito amadurecida, devedora da tradição
literária anglo-americana, na qual Ana Luísa Amaral se move com familiar
à-vontade e arguta inteligência teórica.
Muito atenta ao efémero eterno que é o poema, como privilegiadamente demonstra o livro Entre Dois Rios e Outras Noites
(2008), pelo qual recebeu o Grande Prémio de Poesia da Associação
Portuguesa de Escritores, a autora tem vindo a construir um universo
poético muito particular que oscila entre a atenção dada à experiência
do quotidiano, percorrido com ironia e sentido lúdico, e a própria
experiência da escrita, fascinada perante as possibilidades ou limites
da linguagem poética. Sobretudo nos primeiros livros, a sua escrita
alimenta-se de uma interioridade doméstica de repetidos gestos que todos
partilhamos e de um mundo que facilmente reconhecemos. A verdade é que
esse mundo, visto sempre em deslumbramento, guarda larga distância do
anódino e do banal.
Ana Luísa Amaral, que conta também com relevante produção no domínio da literatura infantil (A Relíquia, adaptado aos mais novos, 2008; Gaspar, o Dedo Diferente 2011; A Tempestade,
2011), foi talhada para ser metida na pele da menina bem comportada e
educada para cumprir expectativas («Letras, jamais!»). A verdade é que
não coube no molde da engenheira química. Deste desajuste nos falaria um
registo que consta da caderneta do colégio de freiras que frequentou:
«A menina é inteligente, mas muito indisciplinada».
A menina fez-se mulher, Professora Associada no Departamento
de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras do Porto, onde
integra a direcção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa,
tradutora de Emily Dickinson, de William Shakespeare, entre outros,
senhora «Dona de nada», reclamando, logo no seu livro de estreia,
publicado em 1990, em aberto diálogo com Maria Teresa Horta, uma
identidade poética própria:
Muito embora os seus poemas exibam marcas inconfundíveis de um sujeito feminino, a autora do Dicionário da Crítica Feminista (2005,
com Ana Gabriela Macedo) não se reconhece na imagem esteriotipada da
«feminista militante», preferindo afirmar a sua individualidade
criadora: «Nem rio nem lira / nem feminino grupo a transbordar: / só o
que herdei em força não herdada / em fonte onde o luar / não está.» (Coisas de Partir).
A indisciplina deu lugar à figura da subversão, sinalizada
no próprio título da antologia que reúne os livros publicados entre 1990
e 2010: Inversos (2010). Alinhem-se ainda os livros de mais recente publicação: Vozes (2011), Escuro (2014), E Todavia (2015).
A obra poética que, livro a livro, Ana Luísa Amaral tem vindo a
construir é o eco afectivo de um coro de vozes constitutivo daquela que é
a nossa tradição literária, da qual possui um sólido conhecimento que
lhe permite virá-la do avesso.
Ao fim de tantos livros de poesia, Ana Luísa Amaral publicou, em 2013, Ara,
um romance de temática viajante e enigmas que se fazem presentes logo a
partir do título; um romance que não é um romance, como que
correspondendo ao desenvolvimento mais alargado de um escrito que não
coubesse nos limites estreitos de um poema.
IN: https://sol.sapo.pt/artigo/597813/ana-luisa-amaral-vence-o-premio-internazionale-fondazione-roma-ritratti-di-poesia-2018
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