martedì 28 maggio 2013

José Rui Teixeira, "Saudades de Roma"

Mensagem de José Rui Teixeira, professor na Escola das Artes da Universidade Católica e investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português, recentemente nomeado diector e presidente do Conselho Científico da Cátedra de Sophia de Mello Breyner Andresen - a quem agradecemos a colaboração.



Caríssimos
Esbarrei com o vosso blogue e aproveito para partilhar os apontamentos do meu moleskine numa recente estadia em Roma, publicados no meu blog: http://equinociodeoutono.blogspot.pt.
Deixo-vos um abraço desde o Porto, com saudades de Roma...
Abraço.
José Rui Teixeira


2013-02-02

Por estes dias estive em Roma com o meu amigo Vítor Teixeira. Publico aqui alguns apontamentos do meu moleskine.


Chove em Roma.
Por todo o lado a perturbadora consciência de que a beleza de uma cidade reside na relação simbiótica entre habitá-la e permitir que ela nos habite. Por todo o lado a perturbadora consciência da distância a que nos situamos de todas as coisas, a promessa ingénua de que aqui seria feliz, como se pudesse de facto ser feliz ou como se a felicidade não fosse uma promessa tão efémera quanto o corpo de uma mulher, o sabor do café no fim da boca, o calor da chávena nas mãos. Sinto que aqui seria feliz porque me sinto habitado e ainda assim, em cada estância, antecipo o regresso. Continua a chover em Roma.
Interessam-me fundamentalmente duas coisas numa cidade: as perspectivas e os pormenores. Por vezes, aborrece-me tudo o que existe entre as perspectivas e os pormenores. Detenho-me sobre a Ponte de Sant' Angelo. Integro no meu campo de visão o Castelo [à direita] e a Basílica de S. Pedro [ao fundo], a extraordinária cúpula que Michelangelo concebeu. É uma perspetiva. Seria lamentável ter morrido sem tê-la integrado na construção da minha identidade. Depois mergulho no emaranhado de ruas, pela Via dei Coronari até à Fontana dei Quattro Fiumi, na Piazza Navona. Faço a sinestésica experiência do ocre que inunda Roma, os tons baços, entre um amarelo antigo e um vermelho esbatido, como se a cidade conservasse uma existência de terracota, de terra calcada, de pedra ferida. É outra perspetiva. Depois há os pormenores: o elefante de Bernini ou o túmulo de Fra Angelico em Santa Maria sopra Minerva, a tensão entre Bernini e Borromini na Piazza Navona, o Pasquino ou uma mulher que atravessa o Campo de Fiori com o poder de incendiar um coração. Perspetiva e pormenor. A Fontana di Trevi ou o melhor café do mundo: um grancaffé zuccherato no Sant' Eustachio. Pergunto se haverá em Roma tantos discípulos de Cristo quantas igrejas. Entretanto, morreu Ivan Iliitch, mas em Roma não se lê Tolstói. Em Roma aprende-se o tom ocre dos dias, um tão mediterrânico elogio da vida, por dentro de uma tão intensa cumplicidade com os sulcos da morte.
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Roma acordou soalheira, o que intensifica os tons ocres da cidade. Detenho-me uns minutos diante da Fontana dei Quattro Fiumi, antes de um grancaffé zuccherato no Sant' Eustachio. Passei a manhã no Museu do Vaticano, em passo acelerado… porque em Roma o tempo é um bem excessivamente valioso para ser desperdiçado dentro de um museu. Sim, prefiro as ruas aos museus. Os museus estão para as obras de arte como os jardins zoológicos para os animais. No fundo, aborrece-me o modo como a tentação cosmética da compartimentarização condiciona a nossa liberdade: os infantários e as escolas tornaram-se depósitos de crianças, os lares de terceira idade depósitos de velhos, há bairros que são depósitos de ricos e bairros que são depósitos de pobres, e os museus são depósitos [arrumados, mas muitas vezes descontextualizados] de obras de arte. Tudo isto para justificar o meu passo acelerado. Ainda assim comovi-me com a coleção de pintura gótica, com um ou outro ícone bizantino, com um sarcófago paleocristão ou com a Pietà de Vincent van Gogh. E no fim de trajetos sinuosos, depois da Scuola di Atene de Raffaello, entra-se na Cappella Sistina. Já está tudo dito sobre a Cappella Sistina. Por momentos não me importam os enredos histórico-culturais, nem os contextos eclesiais. Interessam-me as cores, os diálogos, as idiossincrasias que transformaram aquele espaço numa caixa-de-ressonância para o meu imaginário. Sinto que a minha existência seria irremediavelmente mais pobre sem Perugino, Botticelli e Michelangelo. Não sei em que abismos de luz perdura a identidade espiritual de Michelangelo, mas ali, diante do Juízo Final, agradeci silenciosa e comovidamente a sua existência.
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Depois do Museu do Vaticano, a Basílica de S. Pedro. Ainda não tenho palavras que exprimam o que se sente num lugar como aquele. Outra vez Michelangelo, na formosíssima Pietà, a memória de Palestrina, o baldaquino de Bernini, as dimensões verdadeiramente impressivas da Basílica, de cada estátua, de cada ornamento. Penso na impudência e no destempero, na megalomania dos 'príncipes da Igreja' que legitimaram tudo aquilo em nome de Jesus de Nazaré, em memória de Pedro, o pescador de Betsaida, que viveu em Cafarnaum e pescou no Mar da Galileia. É uma perturbadora contradição: aquela Basílica – e tudo aquilo que ela representa e tudo aquilo que a envolve – é uma poderosa e perversa subversão do Evangelho. ... Depois, caminhando pela Via dei Coronari, pensei que a própria teologia é tantas vezes o meio de legitimação dos processos eclesiais de subversão do Evangelho. E depois silenciei-me com mais um grancaffé zuccherato no Sant' Eustachio. E depois silenciei os murmúrios persistentes com o melhor gelado do mundo, na Giolitti.
E depois a cidade: a Isola Tiberina, Andrea Pozzo na Igreja de Sant' Ignazio di Loyola, Caravaggio na Igreja de San Luigi dei Francesi e na Igreja de Sant' Agostino, a Chiesa del Gesù, a Piazza Venezia e a Piazza del Campidoglio, e o Foro Romano... os arcos de Septímio Severo, de Tito e de Constantino, junto ao Coliseu. A avassaladora densidade do tempo e do espaço. O que somos não chegará a ser ruínas. E aquelas ruínas, de uma beleza comovente, negam assertivamente o epíteto de Roma: Città Eterna. Nascida no sangue de Remo na espada de Rómulo, Roma é a mais eloquente expressão da glória que nos é prometida na juventude e que só experimentamos verdadeiramente se ingenuamente esquecermos que o resto da nossa vida será um impiedoso envelhecimento que nos conduzirá inexoravelmente à morte.
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Último dia em Roma: o Êxtase de Santa Teresa na Igreja de Santa Maria della Vittoria, Santa Susanna de Carlo Maderno, San Carlo alle Quattro Fontane de Borromini. Nas páginas do meu moleskine, um emaranhado de anotações: datas, nomes de escultores, arquitetos e pintores, referências a obras de arte e lugares, ruas e praças, itinerários e curiosidades da história da cultura e da arte. Sigo pela Via delle Quattro Fontane até à Basílica de Santa Maria Maggiore, depois a Basílica de San Giovanni in Laterano e, finalmente, a Basílica de San Paolo Fuori le Mura. E ainda Caravaggio na Igreja de Santa Maria del Popolo, a Piazza di Spagna e o regresso às ruas estreitas. Em Roma, a sofisticação convive com uma certa desarrumação orgânica, entre canteiros de flores e carros mal estacionados, terrazze e piazze, e tudo aquilo que vejo e não digo, porque não há tempo para encontrar as palavras.
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Sim, em Roma lê-se Tolstói. O próprio Ivan Iliitch explicou-me que por vezes vivemos uma vida que consideramos adequada às nossas expectativas sociais, na definição e defesa mais ou menos obstinada de um status quo. Explicou-me que, enquanto vivemos essa vida, estamos mortos. Creio que já o sabia, mas é importante repeti-lo, tantas vezes quantas forem necessárias para consciencializá-lo e integrá-lo no quotidiano, porque a vida concreta de todos os dias não é menos comovente ou impressiva do que Michelangelo, Caravaggio, Bernini ou Pozzo. Olho para a Sardenha, lá em baixo. Vou fechar o moleskine e, depois, vou fechar os olhos. Arrivederci, Roma. Ritorno uno di questi giorni.

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